Sunday, January 24, 2010

se o cão se chamasse homem

é sempre às quartas-feiras, sempre ao meio-dia, e eu o vejo estacionar o pastor alemão em frente ao 208, dando tapinhas no topo da cabeça antes de tocar a campainha com a mão esquerda. ele deve ter por volta duns 23, sempre parecido com o pai, segue canhoto como a mãe previa. do pouco que enxergo, dela reconheço nele o mesmo peso nos ombros e o tique de morder o lábio arrancando pedacinhos de pele. a consulta dura 50 minutos, e é a própria analista quem vem trazê-lo até a porta na saída. ernesto desenrola a correia do poste, e "homem", o cão, volta a marchar feliz ao lado do dono. é pouco, como se vê. e com poucos detalhes. não saberia reconhecer sua voz, por exemplo, nem imaginar com qual sotaque ficou. talvez tenha se esquecido das músicas que cantei. não o conheço, no fim das contas. sua imagem é uma colagem do que vi, em primeira pessoa, e do pouco que sobra dessa distância de três andares e 21 anos. às quartas-feiras, sempre ao meio-dia, exceto em dias de chuva, claro, porque o cão não pode se molhar nem ficar sozinho. suponho. seu nome é palpite, porque na verdade não sei se a placa que balança na coleira vermelha traz inscrito "homem" ou qualquer outra gravação na prata. conhecia os desejos do menino, e fica difícil saber no que eles se transformam depois de crescer, o que mantêm dos sonhos da meninice. era também quarta, e eu trazia maracujás na sacola quando o vi de relance largando moedas ao lado da xícara na mesa da padaria. foram três segundos até reconhecê-lo, porque manteve a mesma cara com sobrancelhas grossas e quase juntas. não quis cumprimentá-lo. como se fugisse, abri com pressa o portão do prédio e me escondi atrás das cortinas de casa. a certeza do anonimato me iludiu e protegeu até a última quarta-feira, quando o zelador entregou o bilhete por baixo da porta. na caligrafia redonda, um olá, um telefone e a inicial. uma semana, hoje, e já são cinco para o meio-dia. o pastor alemão lambe a pata e passa atrás das orelhas, o celular toca no bolso da calça, a voz é anasalada e tem sotaque paulista. alô, ernesto? sou eu.

2 comments:

Anonymous said...

Criativo. O duro é entender o contexto...rs... Não sei se você admira o James Joyce, mas parece que sim...
Desculpa pelos comentários já postados. Infelizmente, não dá pra apagá-los.
De coração, desculpa.

junior said...

Quando se coloca voz na imagem, a história recomeça.