Wednesday, May 26, 2010

os rossi

à parte os marcantes olhos fundos, wilsinho à primeira vista não difere em quase nada dos garotos de sua idade. estatura e peso normais, médias escolares, time de futebol, arranhões nos joelhos. igual à maioria. prefere os bolos de chocolate aos de fubá, desconhece qualquer vaidade e evita retratos em grupo. em sua rotina, no entanto, o caçula dos rossi guarda pouco que o aproxime da vida de outros meninos de doze anos. o pai de wilsinho é agente funerário. da mãe às tias e avó, todos conduzem, com orgulho e há 32 anos, os negócios da família, que funcionam nas dependências do andar inferior do sobrado amarelo. wilsinho tem intimidade com a morte - manipula a tesoura na hora de cortar as roupas que vestirão os defuntos, espalha as flores artificiais sobre o tule fino que cobre as pernas de homens e mulheres que entram e saem de seu porão diariamente. tem sua própria caixa de luvas descartáveis, que calça sempre que é convocado a ajudar. como se sabe, wilsinho não difere em quase nada dos garotos de sua idade, e sendo assim é natural que trabalhe a contragosto. porque manipula corpos inertes contra sua vontade. porque, para driblar o pavor que os rostos pálidos lhe causam, inventa histórias para cada um deles, dá-lhe outros nomes, desenha-lhes outros destinos. na imaginação do menino, os velhos apenas descansam, as mães de lá levantam-se e voltam aos cuidados da família. ilude-se intencionalmente, estão todos dormindo. wilson, o pai, quer ver o nome dos rossi seguir adiante no ramo das funerárias, e para isso doutrina o filho até a tomada de seu posto. ensina-lhe cada passo, como um valente guardião da arte de lidar com a morte. mostra as vantagens de um negócio próprio, e da beleza que é possível encontrar em um trabalho diferente dos outros. não quer o caçula pilotando aviões, pescando em alto mar, engenheiro de arranha-céus ou autor de textos líricos. a consciência virá, repete o orgulho paterno, surdo e inútil como cada um dos corpos que a funerária rossi lava, veste, maquia, enfeita. imerso em seu mundo, wilsinho sonha em silêncio com outros futuros, enquanto seus olhos se afundam lentamente no rosto de quem já viu mais do que suportaria.

2 comments:

milena said...

fiquei horas relendo: "a consciência virá", mas ainda não consigo aceitar isso.

Anonymous said...

Esse novo fundo do blog só pode ser coisa de mãe mesmo...
Tô sempre de olhos nos textos (continuo, diga-se de passagem). Aliás, faz bastante tempo que a acompanho (pelo menos desde a época em que você estava no Orkut)...