Monday, May 29, 2006

princípio do fim

feito bichos de pupilas dilatadas, todos na sala olimpicamente iluminada afundam a cabeça entre os ombros, como se por instantes fosse possível suprimir o pescoço da anatomia humana. o rapaz próximo à porta apóia o braço pelado numa tipóia e observa sua nova condição com curiosidade e um certo desespero. ele sente frio. lá fora o inverno grita, e a cada leve provocação ao sistema eletrônico que comanda a entrada do hospital - que abre de sopetão para manobristas, cachorros incautos e uma folha de jornal que passa às cambalhotas - se encolhem o rapaz, o braço na tipóia e grande parte dos pacientes que aguardam atendimento na noite cheia de quarta-feira. pfuuuu, assopra o vento gelado. doenças pioram à noite e no frio, é fato. a sala geme. duas crianças choram em cantos diferentes. e há um único sentimento unânime, além da dor: o medo. porque o desconhecido é tudo aquilo que nos une e nos iguala.
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parece um almoço de domingo como tantos outros que acontecem ao mesmo tempo na cidade e no mundo. moleque jogando videogame. "não, duque", grita a menina pressionando uma bochecha do boxer com o joelho. "olha o café", oferece a outra. são cinco tias, duas sobrinhas, maridos, um neto acrescido do amiguinho, genro, bisa. intrusos, nós. solidários. na cama a mulher recém-operada recebe presentes, beijos cuidadosos e alguns olhares piedosos que a incomodam. acende um cigarro. a-vida-é-minha-e-eu-faço-dela-o-que-eu-quiser. há no ar um clima quase de aconchego. abraço algumas pessoas com o olhar. sinto saudade, medo, curiosidade. dó. porque o desconhecido é tudo aquilo que nos une e nos iguala.

Saturday, May 27, 2006

27 de maio

a vida mágica me leva a companhias surpreendentes, com croquete na villaboim, capeletti na franklin roosevelt e festa caipira em são bento do sul. incrível como pessoas passam com rapidez, o acaso escolhendo quais devem ficar e aquelas que, de um jeito ou de outro, vão simplesmente desaparecer: pluf.
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27 de maio - previsão do tempo:
dia ensolarado, com temperaturas acima da média (não precisa levar casaco, e você ainda vai passar calor com essa meia-calça fio 80. depois não diga que não avisei).
27 de maio - seu horóscopo:
você vai se sentir como num filme de fellini, onde cornetas berram e interrompem beijos românticos no bexiga, balões atravessam a rua lotada nos jardins e um pote de sorvete derrama gosto de baunilha num passeio aparentemente banal. dia propício para trotar de braços dados e observar a cidade do alto de uma janela obscena. e se o ser humano é mesmo a única espécie capaz de inventar lembranças, é dever cívico sair e criar boas memórias.

Monday, May 08, 2006

inferno astral

quando deu pra ouvir o barulho da pancada, que acertou com pontaria a base da cabeça e fez espirrar sangue em uns poucos papéis, a vontade que me deu era de fugir. de sair veloz como quem disputa uma corrida ou persegue o inimigo. e com uma frente de alguns metros de vantagem, fazer como nos filmes e dobrar esquiva uma esquina escura, respirando arfante encostada ao beco com cartazes e latões de lixo prateados. mas o clarão e a ferida aberta latejavam. e tudo que o pouco raciocínio sobrevivente à hecatombe permitia vislumbrar era a nítida necessidade de desaparecer. acima de desejar, eu tinha que correr. com uma mão apoiado nos joelhos moles, ergo a cabeça para preparar a posição de arranque. preparar, apontar... alguns cabelos estão grudados no contorno da orelha, outros formam uma pasta gosmenta na gola da blusa. soluços barulhentos começam a lamentar minha condição. repentido: meu único desfecho possível é a fuga. e ensaio o primeiro passo, dois, três, e agora estou trotando desengonçada uma marcha atlética risível e pouco eficiente. assim ela vai me alcançar. ou eu vou acabar me entregando. aqui estou, venha me pegar. não revido, você venceu. até porque, confessemos, ia ser bem difícil sumir de mim mesma muito tempo.

Wednesday, May 03, 2006

vazio


porque tão linda assim não existe
a flor
nem mesmo a cor não existe
e o amor
nem mesmo o amor existe