Friday, October 19, 2007

outros tempos

ezequiel assustou quando o moleque puxou de baixo da camiseta furada um rocambole esfarelado. pensou que era uma arma, faca no mínimo, vai me matar aqui e agora na frente de todo mundo. pelo menos teria testemunhas, não era possível que ninguém naquela multidão se manifestasse a favor de um sujeito honesto e trabalhador. cinco neguinhos, cinco, um velho paraplégico em cima duma cadeira podre, dois vendedores de flores murchas, um fedelho que limpava pára-brisas e só uma menina no meio de tudo. cíntia e suas frutas. naquele dia trazia cajus, quando ezequiel jogou a mochila no chão na frente duma galeria de arte, a calçada meio imunda. estava disposto a começar noutro sinal, porque copacabana, diziam, era mais fácil que na barra. 40 segundos contra 1 minuto e meio, concorrência desleal. dava pra fazer um número rápido e ainda correr quase um quarteirão recolhendo as moedas. era basicamente assim: de uma mão para a outra, uma bola pesada de vidro deslizava pelas costas do malabarista, que depois ainda balançava os braços feito uma minhoca em transe para mostrar mais de perto sua arte para os motoristas. argentino, o ezequiel. com uns furos gigantes nas orelhas, dois brincos pretos do tamanho de jogadores de botão. a convivência começou capenga, mas com boa vontade vê-se, sim, que evoluiu. os mulambentos das flores, oras, hoje não filam mais cigarros, e vai ver que não foi mesmo nenhum dos dois que tentou levar na mão leve meus bilhetes de metrô. cíntia, por exemplo, que todo dia violava as caixinhas que a mãe trazia do ceasa só para oferecer um figo, uma goiaba. ezequiel odeia goiaba porque prende o intestino. no brasil, vai entender, as barrigas devem funcionar diferente. olha minha cicatriz do apêndice, e a pirralha balangava o bucho apontando com o dedinho um naco de carne grossa e mais escura que o resto do corpo. dizem que o argentino e cíntia juntaram dinheiro suficiente para alugar um sobrado em deodoro, que hoje a menina é maior de idade, e que trabalha num pedágio da via dutra, enquanto o marido estuda a arte do ilusionismo por correspondência.

uma pasta no móvel da tv

não é que a gente tenha deixado de existir, nada disso. é que ficamos suspensos. pausados. imóveis esperando o estupro de cada memória, e vivos apenas por encher a barriga de expectativa. comi 853 dias e 5 horas, assim, pra arredondar. eis que deu pra ouvir e entender o que acontecia, daí que já tínhamos remexido metade de tudo, e as coisas aconteceram muito rápido. lembro que passou um filminho na cabeça, daqueles que dizem que passam quando a gente morre. talvez eu tenha morrido ligeiro, só pra experimentar. duas ou três úlceras expressas pensando nas possibilidades que não foram, normal uai, até que de longe fechou-se um ciclo e abriu-se outro. viramos uma nova folha em branco.