Saturday, January 10, 2009

toda quarta, sempre à tarde

já eram 14h45, e jonas viu que ia se atrasar. o trânsito àquela hora na pasteur não poderia estar pior, e pra completar ainda chovia. começou a imaginar dona estela pondo a mesa, primeiro abrindo a toalha plastificada por cima da mesa, então dispondo nas mesmas posições a margarina, o açúcar, os guardanapos de pano, pratos, copos e xícaras, talheres, bolo, cesta com pães e os bules de café e leite. ia faltar a geléia, mas ele como sempre diria "pode deixar que eu busco", ela sorriria e ele gentilmente já ofereceria o pote sem a tampa. exatamente os mesmos diálogos, a mesma cordialidade, o mesmo roteiro sem qualquer alteração, tudo milimetricamente igual há um ano e sete meses. uma vez por semana, jonas percorria as ruas desde vargem grande até a urca, no meio da tarde, para visitar a viúva do general reformado que ele arremessou para o alto num descuido ao sair da faculdade, em copacabana. ele acelerou o carro, o homem caminhava pela calçada, e os dois se chocaram num barulho seco e muito curto. agora, o rapaz dobrava a esquina na cândido gaffrée, já procurando por uma vaga naquele quarteirão movimentado por causa do horário de saída da escola no começo da rua. as amêndoas caídas na calçada sempre se colavam nas solas do tênis de jonas, e ele gastava alguns minutos esfregando os pés no capacho do hall de entrada do prédio. o lugar não tinha elevador, mas dona estela morava logo no primeiro andar, o que tornava a subida um esforço mínimo. não havia abraços, muito menos beijos de simpatia, e o cumprimento se resumia a uma sutil reverência de ambos, com os olhos indicando um certo nível de afeição e intimidade. vasinhos de violeta, biscoitos amanteigados ou uma revista de palavras cruzadas eram os presentes que jonas ofertaria, sempre tomando o cuidado de não repetir o gênero por duas semanas seguidas. hoje é dia de biscoitos, e ele sabe que ela vai agradecer e colocá-los dentro do pote em cima da geladeira. conversam sobre o clima, os acontecimentos do bairro, eventualmente um ou outro crime importante que esteja movimentando a opinião pública, e lentamente o relógio se arrasta até as 16h. ele pede desculpas por sair assim tão cedo, há uma porção de afazeres ainda para hoje, e dona estela o acompanha até a calçada, acenando de longe enquanto o carro buzina e jonas expira uma mistura de alívio e culpa.

Friday, January 09, 2009

coração de mãe

ana, oi. olha, pára com isso. por que você saiu daquele jeito? se descabelando, chorando, fazendo o maior auê, vizinho vai ter assunto pro semestre inteiro. porra, não tem cabimento, que tempestade em copo d'água, mulher. ã? eu, cafona? dane-se, ok, não tô nem aí, só quero que você pare de frescura e deixe os outros serem felizes também. sim, eu sei. ahã. sim, claro. mas e o que isso tem de mais? diz, o que tem de mais. eu não vejo problema algum, te juro. sim, eu entendo, mas isso não quer dizer que eu tenha que concordar com tudo que você diz. ah, insensível é você, nem vem. há, essa é boa! não estou invertendo papel nenhum, que mania. veja, a neusa é uma pessoa tão doce, mas tão doce, tem o maior carinho pela menina. trata como se fosse filha mesmo, sabe? como assim? ué, e você queria que ela tratasse sua filha mal? beliscasse a raquel, botasse de castigo? porque tem gente que faz isso, não sei se você sabe. volta e meia aparece na tv, os telejornais sempre mostram. tipo umas crianças torturadas, babá desce a mão e os pais botam câmera escondida. não tô mudando de assunto. só quero te mostrar que essa discussão toda é uma besteira tão grande que não me conformo de ter que ficar aqui perdendo tempo e batendo boca com você. não, eu não tenho compromisso. sim, tem o almoço na minha mãe, mas não tem problema se eu me atrasar alguns minutos. ó, não ofende, deixa minha mãe fora disso. vamos resolver, sério. te pergunto, que mal tem, ana? hein? fala, pô. alô, ana? ana-a? oi, ai, pensei que tivesse caído. então, eu só quero dizer que se a menina quer fazer isso pela madrasta, não tem problema, poxa. eu sei que você não morreu, ana, é só um jeito convencional de se chamar a pessoa. não, eu não quero que você morra. eu só quero, tá prestando atenção? eu só quero que você relaxe e autorize a raquel a entrar com a neusa na igreja, simples assim. eu sei que você já sabe o que eu tô pedindo, não estou te chamando de idiota. ai, cacete. é que com você as coisas são tão longas e complicadas, sempre foram. ana, calma, não desliga. vamos resolver. ana, alô? alôu?

Tuesday, January 06, 2009

macarrão fresco

- tá ouvindo?
- tô
ela não estava ouvindo, que eu sei. até porque, com o violão desafinado daquele jeito, não dava pra escutar nada, nem que ela quisesse. como ainda não tinha percebido? jesus, olha esse dó sustenido. acontece que eu precisava contar, mesmo sabendo que seria uma amostra do meu mais grotesco egoísmo, e ela ia ter que ouvir acima de toda a distorção. é certo que eu pensava quase zero nela e uns noventa e quatro por cento em mim mesma, mas.
- paulinha, coração, dá um tempo, a gente precisa conversar
- fala, beta, tô ouvindo, já falei
- você reparou que esse violão tá fora do tom, né?
- eu sei, a madeira do braço escangalhou com a umidade do banheiro, gosto de tocar enquanto o guilherme se barbeia, pra fazer companhia. tô pra mandar pro conserto mas fico enrolando
- hum
- era isso que você queria dizer? do violão?
- também, mas tem um negócio mais importante
- sei. que é?
- olha só
guilherme girou a chave na fechadura e apareceu com várias sacolinhas plásticas de mercado fazendo vergões roxos nos pulsos e nos dedos, um peso imenso e mal distribuído. a paula vivia enchendo o saco dele dizendo que o certo é levar aquelas bolsas reaproveitáveis, pra não entupir o meio ambiente com lixo desnecessário e todo aquele papo de você sabe quanto tempo um plastiquinho desses leva pra se decompôr. acho que ele não ligava. trouxe tomates, manjericão, queijo branco, espaguete, suco e mais alguns tipos de pão.
- coloca na geladeira, amore, tô indo aí te ajudar. beta, amiga, conversamos depois?
é sempre assim. eu quero contar pra paula que não agüento mais esses almoços de sábado que ela e o guilherme oferecem, que não suporto mais esse apartamento e esse povo chato que ela convida, que o sabonete líqüido do lavabo fede e que só venho mesmo porque adoro paquerar namorado de amiga.
ela nunca me escuta.