Wednesday, December 16, 2009

foco

de tanto curvar-se para olhar o próprio umbigo, um dia o sujeito não pôde mais ficar ereto. com a coluna dobrada ao meio, estudou técnicas tântricas de respiração para que os pulmões funcionassem sem prejuízo de sua saúde, ao mesmo tempo em que reaprendeu a andar baseando o centro de equilíbrio na junção das nádegas esquerda e direita. camisas ganharam botões nas costas, colheres tortas substituíram os antigos garfos, e aos poucos consumaram-se as adapatações necessárias de modo que seu mundo seguisse com poucas alterações significativas. graduou-se com louvor em seis semestres, conheceu a nova zelândia, e aos vinte casou-se com rosa no interior do tocantins. por tornar-se monotemático e tedioso, viu - pelo canto dos olhos - partirem mulher, filho e outros poucos amigos. foram décadas, ao que se sabe, até sua testa colar-se definitivamente ao ventre sem qualquer possibilidade de cura.

Wednesday, July 15, 2009

descoberta

se voavam, invertebrados. ossos pesam. preocuparam-se todos os adultos, houve correria, e alguém afastou martina do ponto onde a grama misturava-se aos restos do passarinho morto pelos cães de guarda. achou bonito o vermelho do sangue colorindo as penas, nenhum detalhe a impressionara, mas foi a visão daquilo que mais pareciam gravetos brancos que fez martina chorar. não chocada, mas impactada pela descoberta. tinham ossos, as aves. sentiam dor. quebravam. a inconsciência de criança mantém martina alheia às especulações - nada de detalhes sobre a morte. mas porque são precoces aos seis anos as meninas, preocupou-se martina com os filhotes, que agora piavam sem pausa de algum lugar do telhado. quem vai alimentá-los? morrerão de fome? se minha mãe é morta, ninguém me cobre de madrugada. talvez congelem.
acomodada na cama, martina sonha com um ninho feito de folhas secas e crina de cavalo. conta cinco bicos abertos, e o que se escuta é música. quando coloca as mãos sobre as avezinhas, percebe seus dedos esquentarem até sentir calor. são os ossos, martina, diz um dos filhotes de bico aberto. com eles nos aquecemos, por eles sobrevivemos. nós, passarinhos, somos mágicos.

Thursday, April 23, 2009

tornar-se um estranho, é este agora o seu dever. causar-me asco, dar-me náuseas, embrulhar minhas tripas à simples visão de sua figura. ensinar-me a análise fria de seus detalhes para depois concluir serem todos insignificantes, assegurando assim que nada de bom seja trazido à memória junto deles. assistir-me impávida e sonolenta diante dos seus sinais. entediada de sua voz. ansiosa pela sua partida. aliviada com sua ausência. ferida e feliz. cruelmente satisfeita com o vazio e a saudade, ignorante do sofrimento. é este agora o seu dever, é este agora o nosso acordo: sua didática versus minha força de vontade. venha e me derrote.

Friday, February 20, 2009

meio ano

há seis meses você saiu de dentro de mim. eu quis e lutei muito pra que fosse da maneira mais natural possível, mas havia uma grande chance de que você pudesse sofrer e eu não quis pagar para ver. foi quando abriram minha barriga num corte estreito e foi por lá que puxaram seu corpinho pra fora do meu. a gente tinha que se separar pra poder se conhecer, e confesso que durante um longo tempo eu sofri por essa contradição. senti você se esticando e empurrando minhas costelas por mais alguns dias mesmo depois de você já ter me deixado, até que compreendi seu coração como algo à parte do meu. você agora tem dentes, tenta ficar de pé, faz careta pra minha comida e ensaia um senso de humor bonito. eu admiro seu jeito de amar e sua boa vontade com o mundo. antes de te conhecer, eu tinha medo de que meu amargor de gente grande contaminasse sua ingenuidade, mas hoje vejo o quanto fui boba e precipitada - você me suaviza a cada dia. já não consigo mais passar pelas portas de casa com você atravessado nos meus braços de tão grande que você ficou. quando dormimos abraçados na cama, você esticado ao meu lado e eu repirando na sua nuca, seus pés já alcançam meu quadril e quase sempre me chutam nos seus movimentos ainda descoordenados de bebê. hoje mergulhamos os dois na banheira e brincamos juntos para comemorar mais uma vez seu nascimento. eu queria muito que você pudesse se lembrar de tudo isso depois de crescer. e é pra esse teodoro adulto que eu escrevo hoje - pra que ele possa, sempre que quiser, saber do meu amor de antigamente.

Sunday, February 08, 2009

sugestão de pauta

o compositor mora numa cobertura colada à montanha mais alta do bairro, duas corcundas de pedra que dividem zonas distintas da cidade. chega-se ao prédio de poucos andares subindo por uma seqüência de cinco ladeiras em curva, distantes alguns quarteirões da agitação da entrada do túnel que atravessa a barriga do morro, desembocando em são conrado. por ali não passam vans nem ônibus, e os eventuais carros que chegam até a pequena rua sem saída, com um amplo estacionamento em forma de praça, ou dirigem-se ao conjunto de três prédios que partilham da encosta, ou estão perdidos num trajeto equivocado, que desemboca inevitavelmente no condomínio marajoara. em meados da década de 90, o compositor procurou a imobiliária que detém quase cem por cento dos apartamentos e casas do bairro com uma proposta irrecusável, e arrendou os muitos metros quadrados com vista tanto para a praia quanto para a montanha. assim morava até o ano passado, quando investiu também na compra do 1002, construindo uma escada para ligar o que agora funciona como dois andares. no térreo, uma área privativa com dois quartos e escritório, banheiros e uma sala ampla repleta de sofás para os dias solitários na semana. no outro pavimento, o acesso da área social leva a uma cozinha, sala de jantar, estúdio e uma varanda que circunda toda a extensão do apartamento, encontrando-se com o deck da piscina um pouco depois das duas enormes portas de vidro. é ali que, no final de semana, amigos e filhos do compositor se reúnem para ouvir histórias sobre produtores, técnicos de áudio, fãs, empresários. hoje, uma segunda-feira à tarde, não há nenhuma visita para o compositor, com exceção da inexperiente jornalista enviada pela revista de celebridades e seu fotógrafo a tiracolo. de camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor responde às perguntas curtas antes de sentar-se à beira da água, para a sessão de retratos. por estar de costas para a montanha, ele mal pôde ver quem arremessou a primeira pedra lá de cima do dois irmãos, e só tomou conhecimento do incidente por causa do barulho que ela fez ao cair na piscina. enquanto virava o pescoço em direção ao mirante do morro, outros dois pedregulhos mergulharam quase no mesmo lugar, debaixo do trampolim de fibra. o compositor ergueu-se com um pouco de dificuldade, os joelhos estalando enquanto se equilibrava espalmando as mãos nos quadris, deixou cair os óculos de propósito, e esticou um dos braços para apontar dizendo "olha lá onde eles ficam". não era a primeira vez que isso acontecia, explicou, e aquela quase agressão tornara-se, para ele, um relacionamento. a pedra atravessava metros e metros até afundar na água, o compositor a resgatava e, ainda que discretamente, sorria para os mesmos três moleques no mirante. no jardim, junto ao bambu japonês e o pé de romã, uma prateleira exibia minerais de formas e tamanhos variados, itens de uma coleção enorme em homenagem àquela quase amizade. um mês depois desse dia, com a mesma camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor estampava, nas bancas, a capa da tal revista de fofocas, ao lado das semanais que noticiavam a queda de um presidente latino-americano. na foto principal, ele aparece sentado em meio às suas pedras e de costas para a grande montanha, numa metalinguagem que só mesmo a jornalista inexperiente poderia imaginar.

Saturday, February 07, 2009

natimorto ou mea culpa

eu tive medo de amar você. porque quando te vi eu soube que iria amar você, não tinha como evitar. acho que nunca te disse isso, que previ minha total impotência no primeiro minuto em que você apareceu na minha frente. mas eu amarelei. você era tanto, e eu sempre fui tão pouco. grande, colorido, leve. óbvio que meu peso e meus tons de cinza te cansariam em algum momento. e você ia fugir. foi antecipando essa fuga que preferi, eu, sumir aos poucos, me escondendo todas as vezes em que você tentava me vasculhar. eu só não contava que você me descobrisse assim tão facilmente, e muito menos que, ainda depois disso, insistisse em ficar. eu, tão pouco interessante. como? e foi por não acreditar nem em você nem em mim mesma que tive medo de te amar - e de, em pouco tempo, te perder. preferi não te ter a ver você partir. e o resultado é que, hoje, quando sonho ou penso em você, choro e sinto o luto desse amor que eu matei.

Saturday, January 10, 2009

toda quarta, sempre à tarde

já eram 14h45, e jonas viu que ia se atrasar. o trânsito àquela hora na pasteur não poderia estar pior, e pra completar ainda chovia. começou a imaginar dona estela pondo a mesa, primeiro abrindo a toalha plastificada por cima da mesa, então dispondo nas mesmas posições a margarina, o açúcar, os guardanapos de pano, pratos, copos e xícaras, talheres, bolo, cesta com pães e os bules de café e leite. ia faltar a geléia, mas ele como sempre diria "pode deixar que eu busco", ela sorriria e ele gentilmente já ofereceria o pote sem a tampa. exatamente os mesmos diálogos, a mesma cordialidade, o mesmo roteiro sem qualquer alteração, tudo milimetricamente igual há um ano e sete meses. uma vez por semana, jonas percorria as ruas desde vargem grande até a urca, no meio da tarde, para visitar a viúva do general reformado que ele arremessou para o alto num descuido ao sair da faculdade, em copacabana. ele acelerou o carro, o homem caminhava pela calçada, e os dois se chocaram num barulho seco e muito curto. agora, o rapaz dobrava a esquina na cândido gaffrée, já procurando por uma vaga naquele quarteirão movimentado por causa do horário de saída da escola no começo da rua. as amêndoas caídas na calçada sempre se colavam nas solas do tênis de jonas, e ele gastava alguns minutos esfregando os pés no capacho do hall de entrada do prédio. o lugar não tinha elevador, mas dona estela morava logo no primeiro andar, o que tornava a subida um esforço mínimo. não havia abraços, muito menos beijos de simpatia, e o cumprimento se resumia a uma sutil reverência de ambos, com os olhos indicando um certo nível de afeição e intimidade. vasinhos de violeta, biscoitos amanteigados ou uma revista de palavras cruzadas eram os presentes que jonas ofertaria, sempre tomando o cuidado de não repetir o gênero por duas semanas seguidas. hoje é dia de biscoitos, e ele sabe que ela vai agradecer e colocá-los dentro do pote em cima da geladeira. conversam sobre o clima, os acontecimentos do bairro, eventualmente um ou outro crime importante que esteja movimentando a opinião pública, e lentamente o relógio se arrasta até as 16h. ele pede desculpas por sair assim tão cedo, há uma porção de afazeres ainda para hoje, e dona estela o acompanha até a calçada, acenando de longe enquanto o carro buzina e jonas expira uma mistura de alívio e culpa.

Friday, January 09, 2009

coração de mãe

ana, oi. olha, pára com isso. por que você saiu daquele jeito? se descabelando, chorando, fazendo o maior auê, vizinho vai ter assunto pro semestre inteiro. porra, não tem cabimento, que tempestade em copo d'água, mulher. ã? eu, cafona? dane-se, ok, não tô nem aí, só quero que você pare de frescura e deixe os outros serem felizes também. sim, eu sei. ahã. sim, claro. mas e o que isso tem de mais? diz, o que tem de mais. eu não vejo problema algum, te juro. sim, eu entendo, mas isso não quer dizer que eu tenha que concordar com tudo que você diz. ah, insensível é você, nem vem. há, essa é boa! não estou invertendo papel nenhum, que mania. veja, a neusa é uma pessoa tão doce, mas tão doce, tem o maior carinho pela menina. trata como se fosse filha mesmo, sabe? como assim? ué, e você queria que ela tratasse sua filha mal? beliscasse a raquel, botasse de castigo? porque tem gente que faz isso, não sei se você sabe. volta e meia aparece na tv, os telejornais sempre mostram. tipo umas crianças torturadas, babá desce a mão e os pais botam câmera escondida. não tô mudando de assunto. só quero te mostrar que essa discussão toda é uma besteira tão grande que não me conformo de ter que ficar aqui perdendo tempo e batendo boca com você. não, eu não tenho compromisso. sim, tem o almoço na minha mãe, mas não tem problema se eu me atrasar alguns minutos. ó, não ofende, deixa minha mãe fora disso. vamos resolver, sério. te pergunto, que mal tem, ana? hein? fala, pô. alô, ana? ana-a? oi, ai, pensei que tivesse caído. então, eu só quero dizer que se a menina quer fazer isso pela madrasta, não tem problema, poxa. eu sei que você não morreu, ana, é só um jeito convencional de se chamar a pessoa. não, eu não quero que você morra. eu só quero, tá prestando atenção? eu só quero que você relaxe e autorize a raquel a entrar com a neusa na igreja, simples assim. eu sei que você já sabe o que eu tô pedindo, não estou te chamando de idiota. ai, cacete. é que com você as coisas são tão longas e complicadas, sempre foram. ana, calma, não desliga. vamos resolver. ana, alô? alôu?

Tuesday, January 06, 2009

macarrão fresco

- tá ouvindo?
- tô
ela não estava ouvindo, que eu sei. até porque, com o violão desafinado daquele jeito, não dava pra escutar nada, nem que ela quisesse. como ainda não tinha percebido? jesus, olha esse dó sustenido. acontece que eu precisava contar, mesmo sabendo que seria uma amostra do meu mais grotesco egoísmo, e ela ia ter que ouvir acima de toda a distorção. é certo que eu pensava quase zero nela e uns noventa e quatro por cento em mim mesma, mas.
- paulinha, coração, dá um tempo, a gente precisa conversar
- fala, beta, tô ouvindo, já falei
- você reparou que esse violão tá fora do tom, né?
- eu sei, a madeira do braço escangalhou com a umidade do banheiro, gosto de tocar enquanto o guilherme se barbeia, pra fazer companhia. tô pra mandar pro conserto mas fico enrolando
- hum
- era isso que você queria dizer? do violão?
- também, mas tem um negócio mais importante
- sei. que é?
- olha só
guilherme girou a chave na fechadura e apareceu com várias sacolinhas plásticas de mercado fazendo vergões roxos nos pulsos e nos dedos, um peso imenso e mal distribuído. a paula vivia enchendo o saco dele dizendo que o certo é levar aquelas bolsas reaproveitáveis, pra não entupir o meio ambiente com lixo desnecessário e todo aquele papo de você sabe quanto tempo um plastiquinho desses leva pra se decompôr. acho que ele não ligava. trouxe tomates, manjericão, queijo branco, espaguete, suco e mais alguns tipos de pão.
- coloca na geladeira, amore, tô indo aí te ajudar. beta, amiga, conversamos depois?
é sempre assim. eu quero contar pra paula que não agüento mais esses almoços de sábado que ela e o guilherme oferecem, que não suporto mais esse apartamento e esse povo chato que ela convida, que o sabonete líqüido do lavabo fede e que só venho mesmo porque adoro paquerar namorado de amiga.
ela nunca me escuta.