Tuesday, June 29, 2010

fuga

a menina acordou com o barulho do pára-sol se fechando. bernardo já não sentia mais os olhos ardendo do laranja do fim da tarde, e com descuido deixou escapar o barulho seco que assustou-a no banco de trás. desculpe, volta a dormir, mas não havia mais cansaço suficiente depois de quase seis horas ressonando, o carro costurando enjoativo pela serra do mar. trouxemos biscoitos, lembra? come um, assim se distrai, e teresa mastigou duas, três rosquinhas de polvilho, até decidir tocar no assunto que realmente importava. para onde vamos? para a casa da floresta, por que fugimos? não fugimos, nos apressamos. é prudente abastecer, pensou bernardo, a noite cai e nos vilarejos quase não existem postos abertos. vamos jantar, veste o casaco, e mais um punhado de ordens até teresa se ajeitar na cadeira da lanchonete, a essa hora cheia de caminhoneiros e algumas famílias. vou querer um virado, e, para ela, uma sopa quente. bico de desaprovação. jantaram em silêncio, largou metade do prato? você me mandou comer biscoitos e não me resta fome para tantos legumes. quando voltaremos? não sei, e minha escola? não importa, cadê minha mãe? não pergunte. já de volta ao carro, entediada e de barriga cheia, teresa estica as pernas entre os bancos do motorista e do carona. são pequenos os cambitos, vestidos numa meia-calça grossa cor-de-rosa. não te preocupa, teresa, diz bernardo, apertando os dedinhos dos pés dentro do sapato de verniz, nada de mal te acontece estando ao meu lado. acreditas no teu pai? e pelo retrovisor vê a menina soprar um beijo de sim.

Wednesday, May 26, 2010

os rossi

à parte os marcantes olhos fundos, wilsinho à primeira vista não difere em quase nada dos garotos de sua idade. estatura e peso normais, médias escolares, time de futebol, arranhões nos joelhos. igual à maioria. prefere os bolos de chocolate aos de fubá, desconhece qualquer vaidade e evita retratos em grupo. em sua rotina, no entanto, o caçula dos rossi guarda pouco que o aproxime da vida de outros meninos de doze anos. o pai de wilsinho é agente funerário. da mãe às tias e avó, todos conduzem, com orgulho e há 32 anos, os negócios da família, que funcionam nas dependências do andar inferior do sobrado amarelo. wilsinho tem intimidade com a morte - manipula a tesoura na hora de cortar as roupas que vestirão os defuntos, espalha as flores artificiais sobre o tule fino que cobre as pernas de homens e mulheres que entram e saem de seu porão diariamente. tem sua própria caixa de luvas descartáveis, que calça sempre que é convocado a ajudar. como se sabe, wilsinho não difere em quase nada dos garotos de sua idade, e sendo assim é natural que trabalhe a contragosto. porque manipula corpos inertes contra sua vontade. porque, para driblar o pavor que os rostos pálidos lhe causam, inventa histórias para cada um deles, dá-lhe outros nomes, desenha-lhes outros destinos. na imaginação do menino, os velhos apenas descansam, as mães de lá levantam-se e voltam aos cuidados da família. ilude-se intencionalmente, estão todos dormindo. wilson, o pai, quer ver o nome dos rossi seguir adiante no ramo das funerárias, e para isso doutrina o filho até a tomada de seu posto. ensina-lhe cada passo, como um valente guardião da arte de lidar com a morte. mostra as vantagens de um negócio próprio, e da beleza que é possível encontrar em um trabalho diferente dos outros. não quer o caçula pilotando aviões, pescando em alto mar, engenheiro de arranha-céus ou autor de textos líricos. a consciência virá, repete o orgulho paterno, surdo e inútil como cada um dos corpos que a funerária rossi lava, veste, maquia, enfeita. imerso em seu mundo, wilsinho sonha em silêncio com outros futuros, enquanto seus olhos se afundam lentamente no rosto de quem já viu mais do que suportaria.

Friday, April 30, 2010

um fragmento

eu penso em você mais horas do dia do que deveria. se você telefona, esse tempo aumenta. sua voz se prolonga mesmo depois que a ligação acaba. não é eco, porque eco é reprodução do que já houve, e nesse caso entendo a voz que continua como uma prévia do que ainda vem. dos dias próximos, dos vindouros abraços. não há culpa, nem mesmo consciência. tudo acontece num plano paralelo. e assim, caminhando lado a lado, seus sinais esporádicos avivam em mim o que, a princípio, denomino afeição. pé ante pé me aproximo no escuro. você dorme ou finge de olhos fechados? acorda, querido, olha para mim.

Thursday, April 22, 2010

indigente

você desce a rua quase a galope, um compasso muito aberto galgando de metro em metro a calçada em reforma do posto de gasolina. é o fim do quarteirão - e você sabe disso. não breca, não vira a cabeça, não calcula o movimento dos carros nem diminui a velocidade. quatro, três, dois, últimos centímetros, e sem susto pisa o asfalto. marchando. a larga avenida de cinco pistas não te vê, e se vê não se importa. segue a mesma dinâmica. limite de 70 quilômetros por hora, ladeira abaixo, e você estanca na terceira faixa, vira de frente abrindo os braços. o homem vitruviano. uma moto desvia, um fusca, o ônibus derrapa e passa fazendo vento na sua camisa. diminuindo e já muito lenta, a caminhonete acerta você em cheio. o parachoque alto esmaga suas coxas, fratura fêmur e bacia. seu estômago se molda ao capô com violência, dobrando-o ao meio, enquanto seu rosto parece bater no pára-brisa. você voa para o alto em uma cambalhota ligeira que te devolve precisa embaixo dos pneus. observo de cima do viaduto, desligo o rádio e a cena segue sem som. engato a primeira enquanto, moroso, o trânsito começa a andar na minha frente.

Sunday, January 24, 2010

se o cão se chamasse homem

é sempre às quartas-feiras, sempre ao meio-dia, e eu o vejo estacionar o pastor alemão em frente ao 208, dando tapinhas no topo da cabeça antes de tocar a campainha com a mão esquerda. ele deve ter por volta duns 23, sempre parecido com o pai, segue canhoto como a mãe previa. do pouco que enxergo, dela reconheço nele o mesmo peso nos ombros e o tique de morder o lábio arrancando pedacinhos de pele. a consulta dura 50 minutos, e é a própria analista quem vem trazê-lo até a porta na saída. ernesto desenrola a correia do poste, e "homem", o cão, volta a marchar feliz ao lado do dono. é pouco, como se vê. e com poucos detalhes. não saberia reconhecer sua voz, por exemplo, nem imaginar com qual sotaque ficou. talvez tenha se esquecido das músicas que cantei. não o conheço, no fim das contas. sua imagem é uma colagem do que vi, em primeira pessoa, e do pouco que sobra dessa distância de três andares e 21 anos. às quartas-feiras, sempre ao meio-dia, exceto em dias de chuva, claro, porque o cão não pode se molhar nem ficar sozinho. suponho. seu nome é palpite, porque na verdade não sei se a placa que balança na coleira vermelha traz inscrito "homem" ou qualquer outra gravação na prata. conhecia os desejos do menino, e fica difícil saber no que eles se transformam depois de crescer, o que mantêm dos sonhos da meninice. era também quarta, e eu trazia maracujás na sacola quando o vi de relance largando moedas ao lado da xícara na mesa da padaria. foram três segundos até reconhecê-lo, porque manteve a mesma cara com sobrancelhas grossas e quase juntas. não quis cumprimentá-lo. como se fugisse, abri com pressa o portão do prédio e me escondi atrás das cortinas de casa. a certeza do anonimato me iludiu e protegeu até a última quarta-feira, quando o zelador entregou o bilhete por baixo da porta. na caligrafia redonda, um olá, um telefone e a inicial. uma semana, hoje, e já são cinco para o meio-dia. o pastor alemão lambe a pata e passa atrás das orelhas, o celular toca no bolso da calça, a voz é anasalada e tem sotaque paulista. alô, ernesto? sou eu.