Friday, April 30, 2010

um fragmento

eu penso em você mais horas do dia do que deveria. se você telefona, esse tempo aumenta. sua voz se prolonga mesmo depois que a ligação acaba. não é eco, porque eco é reprodução do que já houve, e nesse caso entendo a voz que continua como uma prévia do que ainda vem. dos dias próximos, dos vindouros abraços. não há culpa, nem mesmo consciência. tudo acontece num plano paralelo. e assim, caminhando lado a lado, seus sinais esporádicos avivam em mim o que, a princípio, denomino afeição. pé ante pé me aproximo no escuro. você dorme ou finge de olhos fechados? acorda, querido, olha para mim.

Thursday, April 22, 2010

indigente

você desce a rua quase a galope, um compasso muito aberto galgando de metro em metro a calçada em reforma do posto de gasolina. é o fim do quarteirão - e você sabe disso. não breca, não vira a cabeça, não calcula o movimento dos carros nem diminui a velocidade. quatro, três, dois, últimos centímetros, e sem susto pisa o asfalto. marchando. a larga avenida de cinco pistas não te vê, e se vê não se importa. segue a mesma dinâmica. limite de 70 quilômetros por hora, ladeira abaixo, e você estanca na terceira faixa, vira de frente abrindo os braços. o homem vitruviano. uma moto desvia, um fusca, o ônibus derrapa e passa fazendo vento na sua camisa. diminuindo e já muito lenta, a caminhonete acerta você em cheio. o parachoque alto esmaga suas coxas, fratura fêmur e bacia. seu estômago se molda ao capô com violência, dobrando-o ao meio, enquanto seu rosto parece bater no pára-brisa. você voa para o alto em uma cambalhota ligeira que te devolve precisa embaixo dos pneus. observo de cima do viaduto, desligo o rádio e a cena segue sem som. engato a primeira enquanto, moroso, o trânsito começa a andar na minha frente.