Tuesday, November 20, 2007

cinzas

aquela porção enorme de carne estava lá exposta pra quem quisesse ver: um dorso liso e brilhante virado pra cima, a textura como uma bola de borracha, e o rasgo quase fundo que atravessava de uma ponta à outra o corpanzil inerte. dona barda não considerou lá uma grande notícia outra baleia encalhada na areia, mas ainda assim calçou os chinelos e fez o esforço de descer até a praia. considerando o horário, aproveitava-se ainda a viagem para apanhar o pão. gonçalo, o porteiro, tirou o interfone do gancho, para ninguém incomodar, e fez o mesmo, levando junto a sombrinha por causa da garoa.
- disseram que é pesada demais pra colocar no caminhão, explicou o rapaz com a mão esticada, apontando uma carreta na calçada. vão serrar em três, é a única solução.

dona barda sonhou, aquela noite, com os fragmentos da baleia dilacerada. despencando do alto sobre uma travessa de prata, as vísceras se amontoavam todas num barulho gosmento, umas desmaiando por cima das outras, numa pilha dantesca de sangue e ossos partidos. a morte é sádica, pensou, e eu é que não quero ser dividida em pedaços quando a má hora chegar.


gonçalo entrou com a família no apartamento usando uma cópia da chave, e logo ali já dava pra ver a velhinha morta, providencialmente instalada em cima do sofá. pensava em tudo, essa dona barda, até na hora de morrer tratou de se apoiar pra não ficar lá caída no chão. trabalho para quem fica, jamais, se isso é coisa que se faça. enquanto ia se deixando tomar pela nostalgia instantânea da antiga moradora, o porteiro viu o envelopinho apoiado na cristaleira. filhotes, meus queridos. passei desta, logo se vê. cremação é um troço digno, acreditem, talvez o mais digno para horas como essa. não me picotem, pelo amor, quero virar pó e me dissolver no mar. carinho, mãe.

Tuesday, November 06, 2007

medo

pelas contas que fez rapidamente de cabeça, realmente não tinha mais jeito. e agora? pára de se boicotar, arnaldinho, e o guri que quase nem era gente olhava pra cima, a cara da mãe lá no alto paralela ao dedo em riste. e o pai, sujeito todo apoio, profetizava: vai quebrar essa porra toda, troço caro na mão de criança não dá outra, batata. o que é boicote? o que é porra? arnaldinho engoliu dois soluços e correu, quase caindo, pro quarto no final do corredor. não aceitou, nem naquele dia nem em outro qualquer, o presente de aniversário. era lindo, sim, o violão, mas como é que se vive com a impossibilidade de ser inédito? pensa comigo, mãe. se são apenas sete notas, significa que todas as combinações estão gastas, e só me resta, assim, repetir o que já se escreveu. enxugando o catarro do choro com a camisetinha, fez ali mesmo o funeral: aqui jaz o maestro arnaldo coutinho, morto aos sete anos de pura desilusão.

Friday, October 19, 2007

outros tempos

ezequiel assustou quando o moleque puxou de baixo da camiseta furada um rocambole esfarelado. pensou que era uma arma, faca no mínimo, vai me matar aqui e agora na frente de todo mundo. pelo menos teria testemunhas, não era possível que ninguém naquela multidão se manifestasse a favor de um sujeito honesto e trabalhador. cinco neguinhos, cinco, um velho paraplégico em cima duma cadeira podre, dois vendedores de flores murchas, um fedelho que limpava pára-brisas e só uma menina no meio de tudo. cíntia e suas frutas. naquele dia trazia cajus, quando ezequiel jogou a mochila no chão na frente duma galeria de arte, a calçada meio imunda. estava disposto a começar noutro sinal, porque copacabana, diziam, era mais fácil que na barra. 40 segundos contra 1 minuto e meio, concorrência desleal. dava pra fazer um número rápido e ainda correr quase um quarteirão recolhendo as moedas. era basicamente assim: de uma mão para a outra, uma bola pesada de vidro deslizava pelas costas do malabarista, que depois ainda balançava os braços feito uma minhoca em transe para mostrar mais de perto sua arte para os motoristas. argentino, o ezequiel. com uns furos gigantes nas orelhas, dois brincos pretos do tamanho de jogadores de botão. a convivência começou capenga, mas com boa vontade vê-se, sim, que evoluiu. os mulambentos das flores, oras, hoje não filam mais cigarros, e vai ver que não foi mesmo nenhum dos dois que tentou levar na mão leve meus bilhetes de metrô. cíntia, por exemplo, que todo dia violava as caixinhas que a mãe trazia do ceasa só para oferecer um figo, uma goiaba. ezequiel odeia goiaba porque prende o intestino. no brasil, vai entender, as barrigas devem funcionar diferente. olha minha cicatriz do apêndice, e a pirralha balangava o bucho apontando com o dedinho um naco de carne grossa e mais escura que o resto do corpo. dizem que o argentino e cíntia juntaram dinheiro suficiente para alugar um sobrado em deodoro, que hoje a menina é maior de idade, e que trabalha num pedágio da via dutra, enquanto o marido estuda a arte do ilusionismo por correspondência.

uma pasta no móvel da tv

não é que a gente tenha deixado de existir, nada disso. é que ficamos suspensos. pausados. imóveis esperando o estupro de cada memória, e vivos apenas por encher a barriga de expectativa. comi 853 dias e 5 horas, assim, pra arredondar. eis que deu pra ouvir e entender o que acontecia, daí que já tínhamos remexido metade de tudo, e as coisas aconteceram muito rápido. lembro que passou um filminho na cabeça, daqueles que dizem que passam quando a gente morre. talvez eu tenha morrido ligeiro, só pra experimentar. duas ou três úlceras expressas pensando nas possibilidades que não foram, normal uai, até que de longe fechou-se um ciclo e abriu-se outro. viramos uma nova folha em branco.

Monday, September 10, 2007

nelson wannabe

na casa de lucília, os seis gatos têm permissão para circular livremente por onde bem entenderem seus bigodes. um mais rechonchudo que o outro, como bonequinhas russas em forma felina, o último cabendo dentro do primeiro, quase, tamanha simetria. dirceu odeia os gatos de lucília. se incomoda com os pêlos que flutuam no ar o tempo todo, o modo como destróem os estofados, a ausência de qualquer dependência ou ligação emocional. cachorros são melhores, manifestou-se o implicante no almoço de domingo. lucília, apaixonada, sorria iludida, vendo na chatice do marido uma tolerável e até lisonjeira falta de conhecimento limitante, e quiçá recuperável. um rapaz a exemplo de seu marido, culto e bem criado, não se encontra em qualquer esquina. ainda mais filho daquela mãe, a viúva dorotéia. mulher como ela não se vê por aí, alguém comentou na praça. em resumo, queria ela, lucília, tornar-se a outra. a força, a independência, a vivacidade, tudo fazia desejar engoli-la, se fosse essa a maneira de abocanhar aquelas qualidades. que santa! que exemplo! o chamego com a sogra, no entanto, seguiu apenas até que dirceu, agora o insensível, fizesse a primeira maldade com um dos bichanos. foi o estopim para as idéias vis da esposa. lucília virou, ela própria, a fera. e pôs-se, assim, a detestar dirceu. tudo nele lhe causava asco - as observações ocas, o tique de estufar a barriga passados oito minutos exatos, o barulho ao mastigar. tornara-se insuportável a convivência. os trâmites da separação seguiam mansos, redigia-se à máquina o documento definitivo, e foi quando a mulher, aos prantos, deu-se conta da arapuca que havia, sem intenção, armado para si mesma. descartaria, sim, o traste, mas perderia por conseqüência dorotéia. oras, que deslize não pensar nisso antes, chiou entre dentes enquanto dava tapinhas de leve nas bochechas frias. no cartório onde foi apanhar o divórcio, não agüentou a previsão funesta de seu destino de todo solitário e desmaiou entre uns passantes, apoiando-se, que ironia, na fila dos noivos. foram três minutos até que voltasse a si e, com as mãos do ex-marido a lhe suspender, implorou sôfrega:
- agora, sim, meu filho, avisa tua mãe que espero por ela.

Sunday, September 09, 2007

a fêmea, o bicho, a flor

devoção, caros irmãos, devoção é a palavra. parem de culpar inocentes, apontar seus indicadores em direções equivocadas e embaçadas pelas trevas. olhem por suas janelas, louvem os quadris que balançam, as mãos finas que lavam sua louça, os seios firmes onde os senhores choram o futebol derrotado e as humilhações do cotidiano. o que está faltando mesmo em toda e qualquer freguesia é isso, conclua-se o diagnóstico. salvem-se, pois, irmãos. pratiquem, pratiquem, pratiquem, pois só a devoção à vossa esposa pavimenta o caminho para o céu.
amém.

Monday, July 30, 2007

orlando

a viagem era no tempo e subaquática, um luxo de tecnologia, e ia dar numa praia como qualquer outra. ainda pingando sal, por vontade própria ana ergue a pá acima da cabeça e dá um golpe certeiro na caixa de madeira que emerge instantaneamente da areia, na beirinha da água. tem forma de caixão daqueles de anjinho, quase sem acabamento, como se a pouca vida não justificasse o trabalho e o gasto com ornamentos. um par de botas de marujo pretas, de um material entre o vinil e a camurça, que ela puxa excitada de dentro do invólucro e imediatamente enfia nos pés. ana é a única menina na terra onde só os homens sobrevivem. quando o primeiro inspetor passa por ela, já longe do mar, ana estica o braço direito em uma saudação quase nazista, segurando a respiração por medo de que até seu fôlego transpareça feminilidade.

Monday, June 11, 2007

simpatizantes

de regata justíssima, os ramones com botox no tecido esgarçado, apanhou o ônibus pra região dos jardins. fez festinha pro cobrador, que resmungou alguma coisa e devolveu o troco. acabou se perdendo do grupo, manifestou sozinho e quase rolou a consolação depois de um toco do cara do isopor de cerveja. na dispersão, suspirou.
morreu ali, em frente à praça roosevelt, aconchegado no cachecol de penas roxas.

Monday, June 04, 2007

caran d'ashe

quis dizer a ele minha aquarela inteira. ou no mínimo fazê-lo saber que havia uma perspectiva, um tema livre, qualquer coisa que o valesse. só saíram rabiscos sem nexo e um engasgo desbotado.

a vida é uma caixa de lápis de cor.

rem

dessa vez a gente foi pra guerra de canudos - embora houvesse um prédio modernoso com pinta de atualidade. entre um andar e outro, na escada de serviço, dava pra ouvir a preparação dos soldados inimigos que iam descer pra nos atacar. a brilhante idéia de sair correndo foi minha e, quando vi, já pulava trincheiras e alguns defuntos recentes. foi quando fisgou o ciático num zunido e eu, que nem sabia que estava pelada, olhei pra bunda e vi o estrago: três tiros em lugares diferentes sangravam desde o cóccix até o calcanhar. a alforria, a volta pra casa, e de teleférico procurávamos, eu e o casal famosíssimo, um hospital pra extrair os projéteis. os globais ficaram na gávea, e segui subindo até a parada de porto de galinhas, onde o maquinista fez o favor de esquecer minhas malas de viagem. mamãe montou lépida na bicicleta e pedalou a ladeira com o comprovante de babagem em mãos. enquanto ela não voltava, inventei o passatempo: com a ponta da bic preta cutucava os buraquinhos alvejados, borbulhando o sangue e encostando a pontinha na bala pra dar barulho. a população local aplaudiu chocada.

Friday, June 01, 2007

café

é no "já vou" vazio que fica claro.
aflita, engole o vácuo e quase levanta, suspensa cheia de ar. agora aperta e assopra a caneca azul entre as mãos, fazendo ondinhas no café.

- voltei a roer as unhas.
- tinha parado?
- não sei. comecei a roer depois de você e, quando vi, tava nessa recaída.
- põe açúcar.
- tem açúcar, já, você me ofereceu antes. até girou a colherinha.
- lembrei.
- então, se você não estiver fazendo nada, pensei qu
- mas eu tô fazendo, sim.
- desculpa, não deu pra ver.
- não tem problema. é só que eu tô ocupado mesmo.
- lembra que você achava que era um disco voador quando nos despedimos lá fora? já eu, eu tinha certeza de que era algo a ver com fogos.
- queria te ver rir, tonta. fazia tempo, a última vez tinha sido dos chinelos, acho.


- você nunca respondeu minhas cartas.
- é porque nunca soube o que responder.

quis meter os dedos por baixo de um daqueles caracóis, mas achou impróprio. espalmou as costas magras, apoiando o dedão numa costela feito corda de viola. os peitos se espremiam e talvez os quadris fizessem força. não tocou sequer uma música, nenhuma luz brilhou ou mesmo alguém percebeu aqueles dois costurados num abraço mongo. entraram para os registros em silêncio, como qualquer outro acontecimento incrível de ordem galáctica. do banal para a efeméride foram apenas quatro segundos.

Friday, May 04, 2007

há um ano

dearest,

dia doido (e quase doído), esse. minha cabeça gira, as idéias transbordam e eu quase não tive tempo ainda de abrir todas as caixas e plantar em solo desconhecido todas as minhas referências órfãs. já há porta-retratos e livros em cima da estante, um perfume dentro do armário e o aparelho de som no aparador. mas não há eu ainda, entende? um japonês canhoto e habilidoso apertou minha coluna hoje de manhã, eu com a cara afundada naquele buraquinho da mesa de massagem. incrível o barulho quando o sujeito me torceu feito pano sujo, vértebras soltando e um alívio que eu quase já não esperava. descobri, me perdoem os judeus, que os japoneses são, eles sim, o povo escolhido. que hosh-ashaná o quê, salvação do mundo mesmo são o sushi, o feng shui, o hai-kai e, claro, o shiatsu. trabalho ainda engatinhando, e uma distribuição com fúria de currículos para todos aqueles que eu ainda conheço nessa cidade quase-desconhecida. algum resultado, oxalá? hum. preciso tirar umas fotos para mandar para a MTV e definir, numa palavra, meu gosto musical. preciso estudar a política do estado de são paulo para passar no teste da folha. preciso ler a história do brecht e do grupo galpão pra não fazer merda na matéria da bravo. preciso. eu preciso de você, ia dizendo. de você e sua risada frouxa, seu cheiro escondido dentro da porta do canto no armário do espelho. sometimes i miss you so badly that i just can't stand it. o rapaz falava isso no filme ontem. e eu lembrava você. adaptação esquisita, sinais bizarros (e eu que sempre adorei acarajé) e me guardando para quando o carnaval chegar. canastra canta semana que vem, vovô jagger também, e ainda parece que franz ferdinand vai fazer show no circo voador dia 23. da janela não vejo o corcovado.

love,
m.

Saturday, April 21, 2007

sonho

a gente estava no velório do rocky, o lutador. mas ele claramente se mexia dentro do caixão - quem não via a respiração tava fazendo muito de conta. aí depois era um hospital psiquiátrico, e cada um tinha sua cama, e parece que alguém ia fazer um xarope de água sanitária e todo mundo tinha que beber. aí teve uma luta, a gente combatendo uma vilã, e depois uma cerimônia linda linda num páteo enorme, com todos os louquinhos com roupa de festa recebendo condecorações. saí descendo uma ladeira, experimentei na cabeça um chapéu do inspetor clouseau, e me despedi de um professor gente boa, que tinha o mesmo endereço de email que minha sogra. ele pedia pra gente escrever sempre que desse, e eu não conseguia parar de olhar pro seu nariz batatudo e cheio de cravos. meu marido dizia que ia levar aquela guria morena prum motel - mas era jogo rápido de verdade, que eu não me preocupasse, logo estaria de volta pra me levar ao cinema. eu paciente - de paciência, e não doença - fui dar uma volta, colhi três mini-flores-de-canela, e coloquei no vaso que tinha na boca. o celular de alguém tocava, e a gente ficava sabendo que só depois das dez da noite ia ter a liberação do corpo médico.

Tuesday, April 17, 2007

trecho (ótimo) de um conto (nem tanto)

"(...) e me olhou de alto a baixo, sem me dar nenhuma palavra, mas eu também não estava interessado no que ele estava pensando; o que os outros pensam da gente não interessa, só interessa o que a gente pensa da gente; por exemplo, se eu pensar que sou um merda, eu sou mesmo, mas se alguém pensar isso de mim o que que tem?"

Friday, April 13, 2007

cross stance

eu nunca tinha reparado nos seus joelhos.
na minha cabeça, você era, até então, quase só um amontoado de imagens ancoradas a impulsos elétricos que faiscavam a boca do estômago. e, antes que houvesse articulações ou quaisquer outras coisas que dobrassem, havia maçãs e sobrancelhas. aí vieram os joelhos. porque ficamos sentados frente a frente por uma hora e alguma coisa, entediados com aquela encenação burguesa e vazia, e o olhar flutuou três minutos até descansar nas cartilagens redondas onde suas pernas fazem esquina. brilhando. você ir embora: esvazio e murcho. as panturrilhas caminham levando embora. odeio quando seus joelhos me dão as costas.

Sunday, April 01, 2007

mimo

se tivesse comprado a kombi como eu queria, e ignorado o veto de deolinda, ela hoje estaria rodando vazia. a kombi, não deolinda. disse pra quê sete lugares se tu só conhece três pessoas e eu até resmunguei e tals, mas no fim gamei na brasília sete-seis, e assinei o cheque. não que não gostasse mais da perua, que até duas cores tinha. preto embaixo, branco no teto. era minha predileta entre todos os carros expostos no páteo, mas deolinda era ela, sim, a preferida. entre nós, eu digo. e, assim, desisti da kombi, porque no fundo eu sabia que ela estava com a razão. eram, afinal, três as pessoas que eu conhecia. meu pai, primo cícero e ela, deolinda. dava num fusca, inclusive. aí, como é sempre melhor ver deolinda rindo, fiquei com outro carro mesmo. até porque cícero nunca aceita as caronas que ofereço, meu pai diz que prefere ir andando e só deolinda mesmo acaba usando o banco do lado. e o de trás, quando quer falar que tem motorista.
ia ser muito bonito eu dirigindo a kombi.

queria que ela rodasse sozinha.

deolinda, não a kombi.

Sunday, March 18, 2007

recife

rumo ao caos rubro
imensa sangria
instável compasso
partiu você
instantânea fotografia
de nuances equilibradas
que tornariam o ser
eu mesma
sustenido de mim

Tuesday, January 16, 2007

madalena

meu amor perguntou
“hoje é dia fértil?”
ao que respondo positiva
de súbito corro e sento
à máquina
fertilidade não se desperdiça assim

à toa