Tuesday, February 26, 2008

sem título

e tudo que sobrou foi um toco de cigarro amassado no cinzeiro branco, uma metade que você largou pra trás, fumou um pedaço e jogou fora, descartou o supérfluo, a casa, malas, livros, cachorro, inclua aí também o cinzeiro branco, você trancando a porta atrás das costas sem nem olhar ou dizer coisa, sobrou o eco exatamente igual àquele que já existia antes de você chegar e encher armários, despensa, minha cabeça com promessas e mentiras, palavras doces e coloridas como os balões que rindo compramos na lagoa, e soltamos o barbante só para vê-los fugir, achando aquilo tudo muito engraçado, e a vida valia tanto a pena enquanto os quatro balões subiam, e nós olhávamos o sol repartido no plástico cor de laranja, agora não faço idéia de quando será a próxima vez em que vou ter coragem de atravessar a rua, que dirá caminhar na lagoa, porque tudo parece chuvoso e solitário, talvez eu passe o resto dos dias sentado aqui no chão da cozinha, apoiando as costas na geladeira esperando você voltar com um ar de tristeza e arrependimento, testa franzida como você costumava fazer quando eu chorava no cinema, você me olhando sem entender o porquê de chorar num filme, que motivo havia nisso tudo, não vê, querido?, são só personagens, assim como nós dois éramos o elenco dessa história que você largou pela metade, livro mastigado até o meio, ninguém sabe o final, a platéia só imagina o que deve acontecer quando os créditos subirem, porque agora é hora de prestar atenção no que aquele ator tem a dizer, assim que tomar coragem, abrir a boca e desencostar da geladeira, quem sabe ele não corre até a sala, com pauladas destrói tudo que ela não quis levar, bibelôs, tv, sofá, e num último gesto de ódio e saudade, por que não, tudo é possível, vai ver ele até salva aquele toco de cigarro do cinzeiro branco e fuma até o final, enchendo o pulmão numa tragada de fumaça e agonia, pra depois liberar um grito que diz 'eu sinto sua falta, maldita. volta'.