Sunday, February 08, 2009

sugestão de pauta

o compositor mora numa cobertura colada à montanha mais alta do bairro, duas corcundas de pedra que dividem zonas distintas da cidade. chega-se ao prédio de poucos andares subindo por uma seqüência de cinco ladeiras em curva, distantes alguns quarteirões da agitação da entrada do túnel que atravessa a barriga do morro, desembocando em são conrado. por ali não passam vans nem ônibus, e os eventuais carros que chegam até a pequena rua sem saída, com um amplo estacionamento em forma de praça, ou dirigem-se ao conjunto de três prédios que partilham da encosta, ou estão perdidos num trajeto equivocado, que desemboca inevitavelmente no condomínio marajoara. em meados da década de 90, o compositor procurou a imobiliária que detém quase cem por cento dos apartamentos e casas do bairro com uma proposta irrecusável, e arrendou os muitos metros quadrados com vista tanto para a praia quanto para a montanha. assim morava até o ano passado, quando investiu também na compra do 1002, construindo uma escada para ligar o que agora funciona como dois andares. no térreo, uma área privativa com dois quartos e escritório, banheiros e uma sala ampla repleta de sofás para os dias solitários na semana. no outro pavimento, o acesso da área social leva a uma cozinha, sala de jantar, estúdio e uma varanda que circunda toda a extensão do apartamento, encontrando-se com o deck da piscina um pouco depois das duas enormes portas de vidro. é ali que, no final de semana, amigos e filhos do compositor se reúnem para ouvir histórias sobre produtores, técnicos de áudio, fãs, empresários. hoje, uma segunda-feira à tarde, não há nenhuma visita para o compositor, com exceção da inexperiente jornalista enviada pela revista de celebridades e seu fotógrafo a tiracolo. de camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor responde às perguntas curtas antes de sentar-se à beira da água, para a sessão de retratos. por estar de costas para a montanha, ele mal pôde ver quem arremessou a primeira pedra lá de cima do dois irmãos, e só tomou conhecimento do incidente por causa do barulho que ela fez ao cair na piscina. enquanto virava o pescoço em direção ao mirante do morro, outros dois pedregulhos mergulharam quase no mesmo lugar, debaixo do trampolim de fibra. o compositor ergueu-se com um pouco de dificuldade, os joelhos estalando enquanto se equilibrava espalmando as mãos nos quadris, deixou cair os óculos de propósito, e esticou um dos braços para apontar dizendo "olha lá onde eles ficam". não era a primeira vez que isso acontecia, explicou, e aquela quase agressão tornara-se, para ele, um relacionamento. a pedra atravessava metros e metros até afundar na água, o compositor a resgatava e, ainda que discretamente, sorria para os mesmos três moleques no mirante. no jardim, junto ao bambu japonês e o pé de romã, uma prateleira exibia minerais de formas e tamanhos variados, itens de uma coleção enorme em homenagem àquela quase amizade. um mês depois desse dia, com a mesma camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor estampava, nas bancas, a capa da tal revista de fofocas, ao lado das semanais que noticiavam a queda de um presidente latino-americano. na foto principal, ele aparece sentado em meio às suas pedras e de costas para a grande montanha, numa metalinguagem que só mesmo a jornalista inexperiente poderia imaginar.

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