Friday, February 20, 2009
meio ano
há seis meses você saiu de dentro de mim. eu quis e lutei muito pra que fosse da maneira mais natural possível, mas havia uma grande chance de que você pudesse sofrer e eu não quis pagar para ver. foi quando abriram minha barriga num corte estreito e foi por lá que puxaram seu corpinho pra fora do meu. a gente tinha que se separar pra poder se conhecer, e confesso que durante um longo tempo eu sofri por essa contradição. senti você se esticando e empurrando minhas costelas por mais alguns dias mesmo depois de você já ter me deixado, até que compreendi seu coração como algo à parte do meu. você agora tem dentes, tenta ficar de pé, faz careta pra minha comida e ensaia um senso de humor bonito. eu admiro seu jeito de amar e sua boa vontade com o mundo. antes de te conhecer, eu tinha medo de que meu amargor de gente grande contaminasse sua ingenuidade, mas hoje vejo o quanto fui boba e precipitada - você me suaviza a cada dia. já não consigo mais passar pelas portas de casa com você atravessado nos meus braços de tão grande que você ficou. quando dormimos abraçados na cama, você esticado ao meu lado e eu repirando na sua nuca, seus pés já alcançam meu quadril e quase sempre me chutam nos seus movimentos ainda descoordenados de bebê. hoje mergulhamos os dois na banheira e brincamos juntos para comemorar mais uma vez seu nascimento. eu queria muito que você pudesse se lembrar de tudo isso depois de crescer. e é pra esse teodoro adulto que eu escrevo hoje - pra que ele possa, sempre que quiser, saber do meu amor de antigamente.
Sunday, February 08, 2009
sugestão de pauta
o compositor mora numa cobertura colada à montanha mais alta do bairro, duas corcundas de pedra que dividem zonas distintas da cidade. chega-se ao prédio de poucos andares subindo por uma seqüência de cinco ladeiras em curva, distantes alguns quarteirões da agitação da entrada do túnel que atravessa a barriga do morro, desembocando em são conrado. por ali não passam vans nem ônibus, e os eventuais carros que chegam até a pequena rua sem saída, com um amplo estacionamento em forma de praça, ou dirigem-se ao conjunto de três prédios que partilham da encosta, ou estão perdidos num trajeto equivocado, que desemboca inevitavelmente no condomínio marajoara. em meados da década de 90, o compositor procurou a imobiliária que detém quase cem por cento dos apartamentos e casas do bairro com uma proposta irrecusável, e arrendou os muitos metros quadrados com vista tanto para a praia quanto para a montanha. assim morava até o ano passado, quando investiu também na compra do 1002, construindo uma escada para ligar o que agora funciona como dois andares. no térreo, uma área privativa com dois quartos e escritório, banheiros e uma sala ampla repleta de sofás para os dias solitários na semana. no outro pavimento, o acesso da área social leva a uma cozinha, sala de jantar, estúdio e uma varanda que circunda toda a extensão do apartamento, encontrando-se com o deck da piscina um pouco depois das duas enormes portas de vidro. é ali que, no final de semana, amigos e filhos do compositor se reúnem para ouvir histórias sobre produtores, técnicos de áudio, fãs, empresários. hoje, uma segunda-feira à tarde, não há nenhuma visita para o compositor, com exceção da inexperiente jornalista enviada pela revista de celebridades e seu fotógrafo a tiracolo. de camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor responde às perguntas curtas antes de sentar-se à beira da água, para a sessão de retratos. por estar de costas para a montanha, ele mal pôde ver quem arremessou a primeira pedra lá de cima do dois irmãos, e só tomou conhecimento do incidente por causa do barulho que ela fez ao cair na piscina. enquanto virava o pescoço em direção ao mirante do morro, outros dois pedregulhos mergulharam quase no mesmo lugar, debaixo do trampolim de fibra. o compositor ergueu-se com um pouco de dificuldade, os joelhos estalando enquanto se equilibrava espalmando as mãos nos quadris, deixou cair os óculos de propósito, e esticou um dos braços para apontar dizendo "olha lá onde eles ficam". não era a primeira vez que isso acontecia, explicou, e aquela quase agressão tornara-se, para ele, um relacionamento. a pedra atravessava metros e metros até afundar na água, o compositor a resgatava e, ainda que discretamente, sorria para os mesmos três moleques no mirante. no jardim, junto ao bambu japonês e o pé de romã, uma prateleira exibia minerais de formas e tamanhos variados, itens de uma coleção enorme em homenagem àquela quase amizade. um mês depois desse dia, com a mesma camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor estampava, nas bancas, a capa da tal revista de fofocas, ao lado das semanais que noticiavam a queda de um presidente latino-americano. na foto principal, ele aparece sentado em meio às suas pedras e de costas para a grande montanha, numa metalinguagem que só mesmo a jornalista inexperiente poderia imaginar.
Saturday, February 07, 2009
natimorto ou mea culpa
eu tive medo de amar você. porque quando te vi eu soube que iria amar você, não tinha como evitar. acho que nunca te disse isso, que previ minha total impotência no primeiro minuto em que você apareceu na minha frente. mas eu amarelei. você era tanto, e eu sempre fui tão pouco. grande, colorido, leve. óbvio que meu peso e meus tons de cinza te cansariam em algum momento. e você ia fugir. foi antecipando essa fuga que preferi, eu, sumir aos poucos, me escondendo todas as vezes em que você tentava me vasculhar. eu só não contava que você me descobrisse assim tão facilmente, e muito menos que, ainda depois disso, insistisse em ficar. eu, tão pouco interessante. como? e foi por não acreditar nem em você nem em mim mesma que tive medo de te amar - e de, em pouco tempo, te perder. preferi não te ter a ver você partir. e o resultado é que, hoje, quando sonho ou penso em você, choro e sinto o luto desse amor que eu matei.
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