Friday, November 25, 2011

a santa de minas gerais

as referências de dona áurea a precedem. cozinheira mineira, dezoito anos no comando de forno e fogão duma família tradicional das gerais, muito honesta muito discreta, em busca de oportunidade na zona sul de são paulo. cristiana recortou o quadradinho do jornal e, do trabalho, telefona para o número indicado no anúncio. encontro agendado, do outro lado uma voz grave de cantora de blues, e era como se a patroa já pudesse pressentir uma fraçãozinha do vulto de dona áurea. sou pouca bosta não, entoa a cozinheira no final da entrevista, e aquela grosseria gratuita serviu pra cristiana começar a cair de amores pela nova funcionária. começar, só, porque a paixão definitiva vem com o tempo, devagarinho, enquanto a família da arquiteta prova cada quitute, cada tempero, e o amor cumprindo seu papel até que a dependência se torna completa. cristiana, marido e filhos já não podiam mais viver sem áurea, afetiva e fisicamente dominados que estavam pelo escondidinho com purê, a bisteca suculenta, a couve refogadinha no alho, a sustância do tutu, o arroz soltinho. viciados, doutrinados e de quatro pelos pratos da mineira muito honesta muito discreta e que, ô anúncio certeiro, era tudo aquilo de que a família já tinha ouvido falar. é tanto mimo e paparico que cristiana, ela mesma prendada e capaz, se põe a desconfiar: esta mulher há de ter algum defeito. em segredo passa a fiscalizar o trabalho de áurea contando salsichas no refrigerador, medindo o tamanho dos queijos e avaliando as garrafas de vinho caro que o marido guarda no armário alto da sala. se me rouba mando pra rua! e a gorda mineira fazendo jus a toda aquela notória honestidade, se alimentando apenas do que a arquiteta acredita ser justo, restringindo seus domínios ao quartinho na área de serviço. mas a intuição de cristiana não falha, e é numa noite em que tudo parece rotina que, ao lavar a louça, aparece o deslize. engordurados, xícaras e copos! o crime, no entanto, soou a cristiana como uma ameaça – se áurea descobre que sei, pede demissão na hora, coerente em toda sua correção e humildade. e, se áurea se demite, saímos perdendo nós, órfãos todos da couve refogada e da bisteca gordurenta. a única solução, entende a arquiteta, é montar vigília da louça da outra, refazendo o trabalho doméstico na surdina, enquanto a casa dorme. dia após dia, no escuro e em silêncio, a esponja encharcada de sabão da patroa encobre a empregada, ciente da responsabilidade de louvar o talento e a santidade da cozinheira mineira.

Tuesday, August 16, 2011

faxina

tem dia de lavar roupa
outro de esfregar banheira,
um de brilhar a louça.
na terça são limpos os banheiros
de gato,
regadas as gotas aos cactos,
e, com um agrado que se faça,
a samambaia ressuscita.
terça é dia de cuidar das coisas vivas
lá em casa

Tuesday, May 24, 2011

um breve adeus

nada gastem com o funeral mais impopular da história. não paguem a conta das bebidas, não há convidado sedento. esqueçam os salgados para aplacar a fome dos que não virão. guardem as cadeiras, apaguem as velas, economizem nos ornamentos - as flores murchariam por não saberem a quem perfumar. as orações podem seguir seu rumo sem paradas. lamentos não serão ouvidos, histórias saudosas não se contarão. que sosseguem o defunto de quem não se rirão os defeitos e tropeços. sem caixão, sem lençol, o corpo seguirá invisível à indiferença de quem nunca o celebrou. cancelem o velório, cancelem o enterro. o morto, na verdade, não há.

Tuesday, May 03, 2011

33

diálogo besta de meio de festa, o que você faz? eu podo plantas e eu varro escadas, um interesse estúpido porque o que importa na verdade não tem relação com o estar e sim com o ser, esse olhar fundo perseguindo minhas coxas pela casa, até que se sinta um convite e a correspondência. eu já era sua antes de você chegar, ela murmura quase sufocando, e respira o ar do outro vindo de dentro da boca quente e da língua doce em camadas. enquanto aperta o peito esquerdo dela na mão gelada, sente que a biologia o enganou por anos a fio e que o coração na verdade bate dentro do estômago espremido abaixo do esterno, um músculo que engole digere e adora. pulsa oitenta e três vezes antes de apertá-lo no meio das pernas entregue e louca jurando amor eterno.

Monday, April 18, 2011

uma experiência

enfiei a cabeça na caixa no dia dezesseis de outubro. registro como principais as dificuldades de tomar banho e passear o cão, criatura, como se sabe, carente de contato visual para a manutenção de um nível saudável de felicidade. no dia vinte é notável a completa adaptação à nova diagramação do sono, sem maiores contratempos. vinte e três de outubro e crianças riem de mim na fila da farmácia. o papelão de uma das laterais apresenta sinais de desgaste em primeiro de novembro – o experimento não tolera substituições. segundo dia do mês e a gentil vendedora na papelaria presta generoso auxílio com um rolo de fita crepe. obrigado a conviver com bordas enrugadas por quatro dias, culpa do azeite derramado em sete de novembro ao comer tomates. o cão cavoca o fundo da caixa na madrugada do dia doze. maior luminosidade em manhãs de sol devido ao buraco, obrigado a comprar óculos escuros. começa a segunda quinzena, e a faxineira se oferece para tirar o pó da parte interna. recuso. o cheiro de fritura impregna as abas, o vapor do café deformou o quadrado. uma chuva torrencial afoga a cidade nas manchetes do dia quinze, e em vinte e quatro horas completa-se um mês com a caixa na cabeça. sucesso.

Friday, March 04, 2011

cajuína

pelo guarda-chuva, a reconheço. preto, imóvel, apoiado ao chão e aos quadris cobertos com o vestido no mesmo tom escuro, botões do pescoço às canelas. no primeiro dia espera-se pela súbita mudança de humor que o levaria da calçada ao ombro negro, aberto, girando em frenesi à moda dos contentes. mas, ainda que chova, permanecem ele e a velha em transe, absolutamente pasmados e quase tristes, um suportando o peso do outro. há também a bagagem composta de duas malas surradas e uma sacola plástica. vazias, ao que parece. no canteiro central da avenida paulista, a velha aguarda a salvação. alheia em meio aos pacotes de bala nos retrovisores e performáticos encenando loucuras com ralhos ao léu, outros tantos nus despejam cólera contra o poste onde um se abraça e esquece de existir. enquanto ela, a velha, vigia. tem prazo, a insônia. encerra-se na data escrita a lápis no caderno de espiral fantástico, sem linhas, guardado na mala – também preta – vazia. quando a velha, de guarda-chuva aberto, sobe na barca que mal toca o asfalto, e de olhos fechados por fim retorna ao tempo no qual cismou de guardar seu gozo.