Monday, November 26, 2012

para teodoro

tão burrinha, a formiguinha. desde pequenina - e elas crescem? - obedece à fila da comida, seguindo em frente sem parar, você aí, apanhe o pedacinho de pão, dê meia-volta e não chegue tarde, ou a rainha vai zangar. porque tem rainha, a formiguinha. rainha que come sozinha os pãezinhos, folhas, os bichinhos que todo mundo busca, certa ela, quero reinar também quando crescer - hei de duplicar de tamanho! -, chega de ordem e fila para mim. mas mamãe formiga diz que bom mesmo é operar e trabalhar, nossa, como é sozinha, essa rainha. na fila tem conversa, tem cosquinha na anteninha, todo mundo se cumprimenta, cheira o bumbum e o focinho, e é tudo um eterno passeio. às vezes, acontece de alguma formiguinha bem velhinha de repente desligar. que confusão se faz na fila! pluft, pára ela, toda durinha. vira pãozinho, vira folha, vira bichinho, porque assim desligadas elas não andam, nada mexe, e a fila se reveza a carregar nas costas a antiga amiguinha de volta para casa. tem quem se perca enquanto a fila segue, suba num braço ou saco de lixo, e a gente nunca mais vê nem tem notícia. mamãe diz que as coisas do mundo das formigas também acontecem na vida dos outros. eu duvido, porque nunca soube de ninguém ir passear na poça d'água e não chegar em casa nunca mais. que burrinha, a formiguinha! se enroscou nos meus pelinhos, dei um soprão e ela não quer sair. sacodindo a mão eu a derrubo, sem querer, numa gotinha de chuva. nada, formiguinha, nada! mas ela tem preguiça de bater os pezinhos e as mãos, e fica lá, boiando feliz de costas, se esquentando no sol.

Friday, November 25, 2011

a santa de minas gerais

as referências de dona áurea a precedem. cozinheira mineira, dezoito anos no comando de forno e fogão duma família tradicional das gerais, muito honesta muito discreta, em busca de oportunidade na zona sul de são paulo. cristiana recortou o quadradinho do jornal e, do trabalho, telefona para o número indicado no anúncio. encontro agendado, do outro lado uma voz grave de cantora de blues, e era como se a patroa já pudesse pressentir uma fraçãozinha do vulto de dona áurea. sou pouca bosta não, entoa a cozinheira no final da entrevista, e aquela grosseria gratuita serviu pra cristiana começar a cair de amores pela nova funcionária. começar, só, porque a paixão definitiva vem com o tempo, devagarinho, enquanto a família da arquiteta prova cada quitute, cada tempero, e o amor cumprindo seu papel até que a dependência se torna completa. cristiana, marido e filhos já não podiam mais viver sem áurea, afetiva e fisicamente dominados que estavam pelo escondidinho com purê, a bisteca suculenta, a couve refogadinha no alho, a sustância do tutu, o arroz soltinho. viciados, doutrinados e de quatro pelos pratos da mineira muito honesta muito discreta e que, ô anúncio certeiro, era tudo aquilo de que a família já tinha ouvido falar. é tanto mimo e paparico que cristiana, ela mesma prendada e capaz, se põe a desconfiar: esta mulher há de ter algum defeito. em segredo passa a fiscalizar o trabalho de áurea contando salsichas no refrigerador, medindo o tamanho dos queijos e avaliando as garrafas de vinho caro que o marido guarda no armário alto da sala. se me rouba mando pra rua! e a gorda mineira fazendo jus a toda aquela notória honestidade, se alimentando apenas do que a arquiteta acredita ser justo, restringindo seus domínios ao quartinho na área de serviço. mas a intuição de cristiana não falha, e é numa noite em que tudo parece rotina que, ao lavar a louça, aparece o deslize. engordurados, xícaras e copos! o crime, no entanto, soou a cristiana como uma ameaça – se áurea descobre que sei, pede demissão na hora, coerente em toda sua correção e humildade. e, se áurea se demite, saímos perdendo nós, órfãos todos da couve refogada e da bisteca gordurenta. a única solução, entende a arquiteta, é montar vigília da louça da outra, refazendo o trabalho doméstico na surdina, enquanto a casa dorme. dia após dia, no escuro e em silêncio, a esponja encharcada de sabão da patroa encobre a empregada, ciente da responsabilidade de louvar o talento e a santidade da cozinheira mineira.

Tuesday, August 16, 2011

faxina

tem dia de lavar roupa
outro de esfregar banheira,
um de brilhar a louça.
na terça são limpos os banheiros
de gato,
regadas as gotas aos cactos,
e, com um agrado que se faça,
a samambaia ressuscita.
terça é dia de cuidar das coisas vivas
lá em casa

Tuesday, May 24, 2011

um breve adeus

nada gastem com o funeral mais impopular da história. não paguem a conta das bebidas, não há convidado sedento. esqueçam os salgados para aplacar a fome dos que não virão. guardem as cadeiras, apaguem as velas, economizem nos ornamentos - as flores murchariam por não saberem a quem perfumar. as orações podem seguir seu rumo sem paradas. lamentos não serão ouvidos, histórias saudosas não se contarão. que sosseguem o defunto de quem não se rirão os defeitos e tropeços. sem caixão, sem lençol, o corpo seguirá invisível à indiferença de quem nunca o celebrou. cancelem o velório, cancelem o enterro. o morto, na verdade, não há.

Tuesday, May 03, 2011

33

diálogo besta de meio de festa, o que você faz? eu podo plantas e eu varro escadas, um interesse estúpido porque o que importa na verdade não tem relação com o estar e sim com o ser, esse olhar fundo perseguindo minhas coxas pela casa, até que se sinta um convite e a correspondência. eu já era sua antes de você chegar, ela murmura quase sufocando, e respira o ar do outro vindo de dentro da boca quente e da língua doce em camadas. enquanto aperta o peito esquerdo dela na mão gelada, sente que a biologia o enganou por anos a fio e que o coração na verdade bate dentro do estômago espremido abaixo do esterno, um músculo que engole digere e adora. pulsa oitenta e três vezes antes de apertá-lo no meio das pernas entregue e louca jurando amor eterno.

Monday, April 18, 2011

uma experiência

enfiei a cabeça na caixa no dia dezesseis de outubro. registro como principais as dificuldades de tomar banho e passear o cão, criatura, como se sabe, carente de contato visual para a manutenção de um nível saudável de felicidade. no dia vinte é notável a completa adaptação à nova diagramação do sono, sem maiores contratempos. vinte e três de outubro e crianças riem de mim na fila da farmácia. o papelão de uma das laterais apresenta sinais de desgaste em primeiro de novembro – o experimento não tolera substituições. segundo dia do mês e a gentil vendedora na papelaria presta generoso auxílio com um rolo de fita crepe. obrigado a conviver com bordas enrugadas por quatro dias, culpa do azeite derramado em sete de novembro ao comer tomates. o cão cavoca o fundo da caixa na madrugada do dia doze. maior luminosidade em manhãs de sol devido ao buraco, obrigado a comprar óculos escuros. começa a segunda quinzena, e a faxineira se oferece para tirar o pó da parte interna. recuso. o cheiro de fritura impregna as abas, o vapor do café deformou o quadrado. uma chuva torrencial afoga a cidade nas manchetes do dia quinze, e em vinte e quatro horas completa-se um mês com a caixa na cabeça. sucesso.

Friday, March 04, 2011

cajuína

pelo guarda-chuva, a reconheço. preto, imóvel, apoiado ao chão e aos quadris cobertos com o vestido no mesmo tom escuro, botões do pescoço às canelas. no primeiro dia espera-se pela súbita mudança de humor que o levaria da calçada ao ombro negro, aberto, girando em frenesi à moda dos contentes. mas, ainda que chova, permanecem ele e a velha em transe, absolutamente pasmados e quase tristes, um suportando o peso do outro. há também a bagagem composta de duas malas surradas e uma sacola plástica. vazias, ao que parece. no canteiro central da avenida paulista, a velha aguarda a salvação. alheia em meio aos pacotes de bala nos retrovisores e performáticos encenando loucuras com ralhos ao léu, outros tantos nus despejam cólera contra o poste onde um se abraça e esquece de existir. enquanto ela, a velha, vigia. tem prazo, a insônia. encerra-se na data escrita a lápis no caderno de espiral fantástico, sem linhas, guardado na mala – também preta – vazia. quando a velha, de guarda-chuva aberto, sobe na barca que mal toca o asfalto, e de olhos fechados por fim retorna ao tempo no qual cismou de guardar seu gozo.

Tuesday, June 29, 2010

fuga

a menina acordou com o barulho do pára-sol se fechando. bernardo já não sentia mais os olhos ardendo do laranja do fim da tarde, e com descuido deixou escapar o barulho seco que assustou-a no banco de trás. desculpe, volta a dormir, mas não havia mais cansaço suficiente depois de quase seis horas ressonando, o carro costurando enjoativo pela serra do mar. trouxemos biscoitos, lembra? come um, assim se distrai, e teresa mastigou duas, três rosquinhas de polvilho, até decidir tocar no assunto que realmente importava. para onde vamos? para a casa da floresta, por que fugimos? não fugimos, nos apressamos. é prudente abastecer, pensou bernardo, a noite cai e nos vilarejos quase não existem postos abertos. vamos jantar, veste o casaco, e mais um punhado de ordens até teresa se ajeitar na cadeira da lanchonete, a essa hora cheia de caminhoneiros e algumas famílias. vou querer um virado, e, para ela, uma sopa quente. bico de desaprovação. jantaram em silêncio, largou metade do prato? você me mandou comer biscoitos e não me resta fome para tantos legumes. quando voltaremos? não sei, e minha escola? não importa, cadê minha mãe? não pergunte. já de volta ao carro, entediada e de barriga cheia, teresa estica as pernas entre os bancos do motorista e do carona. são pequenos os cambitos, vestidos numa meia-calça grossa cor-de-rosa. não te preocupa, teresa, diz bernardo, apertando os dedinhos dos pés dentro do sapato de verniz, nada de mal te acontece estando ao meu lado. acreditas no teu pai? e pelo retrovisor vê a menina soprar um beijo de sim.

Wednesday, May 26, 2010

os rossi

à parte os marcantes olhos fundos, wilsinho à primeira vista não difere em quase nada dos garotos de sua idade. estatura e peso normais, médias escolares, time de futebol, arranhões nos joelhos. igual à maioria. prefere os bolos de chocolate aos de fubá, desconhece qualquer vaidade e evita retratos em grupo. em sua rotina, no entanto, o caçula dos rossi guarda pouco que o aproxime da vida de outros meninos de doze anos. o pai de wilsinho é agente funerário. da mãe às tias e avó, todos conduzem, com orgulho e há 32 anos, os negócios da família, que funcionam nas dependências do andar inferior do sobrado amarelo. wilsinho tem intimidade com a morte - manipula a tesoura na hora de cortar as roupas que vestirão os defuntos, espalha as flores artificiais sobre o tule fino que cobre as pernas de homens e mulheres que entram e saem de seu porão diariamente. tem sua própria caixa de luvas descartáveis, que calça sempre que é convocado a ajudar. como se sabe, wilsinho não difere em quase nada dos garotos de sua idade, e sendo assim é natural que trabalhe a contragosto. porque manipula corpos inertes contra sua vontade. porque, para driblar o pavor que os rostos pálidos lhe causam, inventa histórias para cada um deles, dá-lhe outros nomes, desenha-lhes outros destinos. na imaginação do menino, os velhos apenas descansam, as mães de lá levantam-se e voltam aos cuidados da família. ilude-se intencionalmente, estão todos dormindo. wilson, o pai, quer ver o nome dos rossi seguir adiante no ramo das funerárias, e para isso doutrina o filho até a tomada de seu posto. ensina-lhe cada passo, como um valente guardião da arte de lidar com a morte. mostra as vantagens de um negócio próprio, e da beleza que é possível encontrar em um trabalho diferente dos outros. não quer o caçula pilotando aviões, pescando em alto mar, engenheiro de arranha-céus ou autor de textos líricos. a consciência virá, repete o orgulho paterno, surdo e inútil como cada um dos corpos que a funerária rossi lava, veste, maquia, enfeita. imerso em seu mundo, wilsinho sonha em silêncio com outros futuros, enquanto seus olhos se afundam lentamente no rosto de quem já viu mais do que suportaria.

Friday, April 30, 2010

um fragmento

eu penso em você mais horas do dia do que deveria. se você telefona, esse tempo aumenta. sua voz se prolonga mesmo depois que a ligação acaba. não é eco, porque eco é reprodução do que já houve, e nesse caso entendo a voz que continua como uma prévia do que ainda vem. dos dias próximos, dos vindouros abraços. não há culpa, nem mesmo consciência. tudo acontece num plano paralelo. e assim, caminhando lado a lado, seus sinais esporádicos avivam em mim o que, a princípio, denomino afeição. pé ante pé me aproximo no escuro. você dorme ou finge de olhos fechados? acorda, querido, olha para mim.

Thursday, April 22, 2010

indigente

você desce a rua quase a galope, um compasso muito aberto galgando de metro em metro a calçada em reforma do posto de gasolina. é o fim do quarteirão - e você sabe disso. não breca, não vira a cabeça, não calcula o movimento dos carros nem diminui a velocidade. quatro, três, dois, últimos centímetros, e sem susto pisa o asfalto. marchando. a larga avenida de cinco pistas não te vê, e se vê não se importa. segue a mesma dinâmica. limite de 70 quilômetros por hora, ladeira abaixo, e você estanca na terceira faixa, vira de frente abrindo os braços. o homem vitruviano. uma moto desvia, um fusca, o ônibus derrapa e passa fazendo vento na sua camisa. diminuindo e já muito lenta, a caminhonete acerta você em cheio. o parachoque alto esmaga suas coxas, fratura fêmur e bacia. seu estômago se molda ao capô com violência, dobrando-o ao meio, enquanto seu rosto parece bater no pára-brisa. você voa para o alto em uma cambalhota ligeira que te devolve precisa embaixo dos pneus. observo de cima do viaduto, desligo o rádio e a cena segue sem som. engato a primeira enquanto, moroso, o trânsito começa a andar na minha frente.

Sunday, January 24, 2010

se o cão se chamasse homem

é sempre às quartas-feiras, sempre ao meio-dia, e eu o vejo estacionar o pastor alemão em frente ao 208, dando tapinhas no topo da cabeça antes de tocar a campainha com a mão esquerda. ele deve ter por volta duns 23, sempre parecido com o pai, segue canhoto como a mãe previa. do pouco que enxergo, dela reconheço nele o mesmo peso nos ombros e o tique de morder o lábio arrancando pedacinhos de pele. a consulta dura 50 minutos, e é a própria analista quem vem trazê-lo até a porta na saída. ernesto desenrola a correia do poste, e "homem", o cão, volta a marchar feliz ao lado do dono. é pouco, como se vê. e com poucos detalhes. não saberia reconhecer sua voz, por exemplo, nem imaginar com qual sotaque ficou. talvez tenha se esquecido das músicas que cantei. não o conheço, no fim das contas. sua imagem é uma colagem do que vi, em primeira pessoa, e do pouco que sobra dessa distância de três andares e 21 anos. às quartas-feiras, sempre ao meio-dia, exceto em dias de chuva, claro, porque o cão não pode se molhar nem ficar sozinho. suponho. seu nome é palpite, porque na verdade não sei se a placa que balança na coleira vermelha traz inscrito "homem" ou qualquer outra gravação na prata. conhecia os desejos do menino, e fica difícil saber no que eles se transformam depois de crescer, o que mantêm dos sonhos da meninice. era também quarta, e eu trazia maracujás na sacola quando o vi de relance largando moedas ao lado da xícara na mesa da padaria. foram três segundos até reconhecê-lo, porque manteve a mesma cara com sobrancelhas grossas e quase juntas. não quis cumprimentá-lo. como se fugisse, abri com pressa o portão do prédio e me escondi atrás das cortinas de casa. a certeza do anonimato me iludiu e protegeu até a última quarta-feira, quando o zelador entregou o bilhete por baixo da porta. na caligrafia redonda, um olá, um telefone e a inicial. uma semana, hoje, e já são cinco para o meio-dia. o pastor alemão lambe a pata e passa atrás das orelhas, o celular toca no bolso da calça, a voz é anasalada e tem sotaque paulista. alô, ernesto? sou eu.

Wednesday, December 16, 2009

foco

de tanto curvar-se para olhar o próprio umbigo, um dia o sujeito não pôde mais ficar ereto. com a coluna dobrada ao meio, estudou técnicas tântricas de respiração para que os pulmões funcionassem sem prejuízo de sua saúde, ao mesmo tempo em que reaprendeu a andar baseando o centro de equilíbrio na junção das nádegas esquerda e direita. camisas ganharam botões nas costas, colheres tortas substituíram os antigos garfos, e aos poucos consumaram-se as adapatações necessárias de modo que seu mundo seguisse com poucas alterações significativas. graduou-se com louvor em seis semestres, conheceu a nova zelândia, e aos vinte casou-se com rosa no interior do tocantins. por tornar-se monotemático e tedioso, viu - pelo canto dos olhos - partirem mulher, filho e outros poucos amigos. foram décadas, ao que se sabe, até sua testa colar-se definitivamente ao ventre sem qualquer possibilidade de cura.

Wednesday, July 15, 2009

descoberta

se voavam, invertebrados. ossos pesam. preocuparam-se todos os adultos, houve correria, e alguém afastou martina do ponto onde a grama misturava-se aos restos do passarinho morto pelos cães de guarda. achou bonito o vermelho do sangue colorindo as penas, nenhum detalhe a impressionara, mas foi a visão daquilo que mais pareciam gravetos brancos que fez martina chorar. não chocada, mas impactada pela descoberta. tinham ossos, as aves. sentiam dor. quebravam. a inconsciência de criança mantém martina alheia às especulações - nada de detalhes sobre a morte. mas porque são precoces aos seis anos as meninas, preocupou-se martina com os filhotes, que agora piavam sem pausa de algum lugar do telhado. quem vai alimentá-los? morrerão de fome? se minha mãe é morta, ninguém me cobre de madrugada. talvez congelem.
acomodada na cama, martina sonha com um ninho feito de folhas secas e crina de cavalo. conta cinco bicos abertos, e o que se escuta é música. quando coloca as mãos sobre as avezinhas, percebe seus dedos esquentarem até sentir calor. são os ossos, martina, diz um dos filhotes de bico aberto. com eles nos aquecemos, por eles sobrevivemos. nós, passarinhos, somos mágicos.

Thursday, April 23, 2009

tornar-se um estranho, é este agora o seu dever. causar-me asco, dar-me náuseas, embrulhar minhas tripas à simples visão de sua figura. ensinar-me a análise fria de seus detalhes para depois concluir serem todos insignificantes, assegurando assim que nada de bom seja trazido à memória junto deles. assistir-me impávida e sonolenta diante dos seus sinais. entediada de sua voz. ansiosa pela sua partida. aliviada com sua ausência. ferida e feliz. cruelmente satisfeita com o vazio e a saudade, ignorante do sofrimento. é este agora o seu dever, é este agora o nosso acordo: sua didática versus minha força de vontade. venha e me derrote.

Friday, February 20, 2009

meio ano

há seis meses você saiu de dentro de mim. eu quis e lutei muito pra que fosse da maneira mais natural possível, mas havia uma grande chance de que você pudesse sofrer e eu não quis pagar para ver. foi quando abriram minha barriga num corte estreito e foi por lá que puxaram seu corpinho pra fora do meu. a gente tinha que se separar pra poder se conhecer, e confesso que durante um longo tempo eu sofri por essa contradição. senti você se esticando e empurrando minhas costelas por mais alguns dias mesmo depois de você já ter me deixado, até que compreendi seu coração como algo à parte do meu. você agora tem dentes, tenta ficar de pé, faz careta pra minha comida e ensaia um senso de humor bonito. eu admiro seu jeito de amar e sua boa vontade com o mundo. antes de te conhecer, eu tinha medo de que meu amargor de gente grande contaminasse sua ingenuidade, mas hoje vejo o quanto fui boba e precipitada - você me suaviza a cada dia. já não consigo mais passar pelas portas de casa com você atravessado nos meus braços de tão grande que você ficou. quando dormimos abraçados na cama, você esticado ao meu lado e eu repirando na sua nuca, seus pés já alcançam meu quadril e quase sempre me chutam nos seus movimentos ainda descoordenados de bebê. hoje mergulhamos os dois na banheira e brincamos juntos para comemorar mais uma vez seu nascimento. eu queria muito que você pudesse se lembrar de tudo isso depois de crescer. e é pra esse teodoro adulto que eu escrevo hoje - pra que ele possa, sempre que quiser, saber do meu amor de antigamente.

Sunday, February 08, 2009

sugestão de pauta

o compositor mora numa cobertura colada à montanha mais alta do bairro, duas corcundas de pedra que dividem zonas distintas da cidade. chega-se ao prédio de poucos andares subindo por uma seqüência de cinco ladeiras em curva, distantes alguns quarteirões da agitação da entrada do túnel que atravessa a barriga do morro, desembocando em são conrado. por ali não passam vans nem ônibus, e os eventuais carros que chegam até a pequena rua sem saída, com um amplo estacionamento em forma de praça, ou dirigem-se ao conjunto de três prédios que partilham da encosta, ou estão perdidos num trajeto equivocado, que desemboca inevitavelmente no condomínio marajoara. em meados da década de 90, o compositor procurou a imobiliária que detém quase cem por cento dos apartamentos e casas do bairro com uma proposta irrecusável, e arrendou os muitos metros quadrados com vista tanto para a praia quanto para a montanha. assim morava até o ano passado, quando investiu também na compra do 1002, construindo uma escada para ligar o que agora funciona como dois andares. no térreo, uma área privativa com dois quartos e escritório, banheiros e uma sala ampla repleta de sofás para os dias solitários na semana. no outro pavimento, o acesso da área social leva a uma cozinha, sala de jantar, estúdio e uma varanda que circunda toda a extensão do apartamento, encontrando-se com o deck da piscina um pouco depois das duas enormes portas de vidro. é ali que, no final de semana, amigos e filhos do compositor se reúnem para ouvir histórias sobre produtores, técnicos de áudio, fãs, empresários. hoje, uma segunda-feira à tarde, não há nenhuma visita para o compositor, com exceção da inexperiente jornalista enviada pela revista de celebridades e seu fotógrafo a tiracolo. de camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor responde às perguntas curtas antes de sentar-se à beira da água, para a sessão de retratos. por estar de costas para a montanha, ele mal pôde ver quem arremessou a primeira pedra lá de cima do dois irmãos, e só tomou conhecimento do incidente por causa do barulho que ela fez ao cair na piscina. enquanto virava o pescoço em direção ao mirante do morro, outros dois pedregulhos mergulharam quase no mesmo lugar, debaixo do trampolim de fibra. o compositor ergueu-se com um pouco de dificuldade, os joelhos estalando enquanto se equilibrava espalmando as mãos nos quadris, deixou cair os óculos de propósito, e esticou um dos braços para apontar dizendo "olha lá onde eles ficam". não era a primeira vez que isso acontecia, explicou, e aquela quase agressão tornara-se, para ele, um relacionamento. a pedra atravessava metros e metros até afundar na água, o compositor a resgatava e, ainda que discretamente, sorria para os mesmos três moleques no mirante. no jardim, junto ao bambu japonês e o pé de romã, uma prateleira exibia minerais de formas e tamanhos variados, itens de uma coleção enorme em homenagem àquela quase amizade. um mês depois desse dia, com a mesma camisa azul, bermuda e chinelos, o compositor estampava, nas bancas, a capa da tal revista de fofocas, ao lado das semanais que noticiavam a queda de um presidente latino-americano. na foto principal, ele aparece sentado em meio às suas pedras e de costas para a grande montanha, numa metalinguagem que só mesmo a jornalista inexperiente poderia imaginar.

Saturday, February 07, 2009

natimorto ou mea culpa

eu tive medo de amar você. porque quando te vi eu soube que iria amar você, não tinha como evitar. acho que nunca te disse isso, que previ minha total impotência no primeiro minuto em que você apareceu na minha frente. mas eu amarelei. você era tanto, e eu sempre fui tão pouco. grande, colorido, leve. óbvio que meu peso e meus tons de cinza te cansariam em algum momento. e você ia fugir. foi antecipando essa fuga que preferi, eu, sumir aos poucos, me escondendo todas as vezes em que você tentava me vasculhar. eu só não contava que você me descobrisse assim tão facilmente, e muito menos que, ainda depois disso, insistisse em ficar. eu, tão pouco interessante. como? e foi por não acreditar nem em você nem em mim mesma que tive medo de te amar - e de, em pouco tempo, te perder. preferi não te ter a ver você partir. e o resultado é que, hoje, quando sonho ou penso em você, choro e sinto o luto desse amor que eu matei.

Saturday, January 10, 2009

toda quarta, sempre à tarde

já eram 14h45, e jonas viu que ia se atrasar. o trânsito àquela hora na pasteur não poderia estar pior, e pra completar ainda chovia. começou a imaginar dona estela pondo a mesa, primeiro abrindo a toalha plastificada por cima da mesa, então dispondo nas mesmas posições a margarina, o açúcar, os guardanapos de pano, pratos, copos e xícaras, talheres, bolo, cesta com pães e os bules de café e leite. ia faltar a geléia, mas ele como sempre diria "pode deixar que eu busco", ela sorriria e ele gentilmente já ofereceria o pote sem a tampa. exatamente os mesmos diálogos, a mesma cordialidade, o mesmo roteiro sem qualquer alteração, tudo milimetricamente igual há um ano e sete meses. uma vez por semana, jonas percorria as ruas desde vargem grande até a urca, no meio da tarde, para visitar a viúva do general reformado que ele arremessou para o alto num descuido ao sair da faculdade, em copacabana. ele acelerou o carro, o homem caminhava pela calçada, e os dois se chocaram num barulho seco e muito curto. agora, o rapaz dobrava a esquina na cândido gaffrée, já procurando por uma vaga naquele quarteirão movimentado por causa do horário de saída da escola no começo da rua. as amêndoas caídas na calçada sempre se colavam nas solas do tênis de jonas, e ele gastava alguns minutos esfregando os pés no capacho do hall de entrada do prédio. o lugar não tinha elevador, mas dona estela morava logo no primeiro andar, o que tornava a subida um esforço mínimo. não havia abraços, muito menos beijos de simpatia, e o cumprimento se resumia a uma sutil reverência de ambos, com os olhos indicando um certo nível de afeição e intimidade. vasinhos de violeta, biscoitos amanteigados ou uma revista de palavras cruzadas eram os presentes que jonas ofertaria, sempre tomando o cuidado de não repetir o gênero por duas semanas seguidas. hoje é dia de biscoitos, e ele sabe que ela vai agradecer e colocá-los dentro do pote em cima da geladeira. conversam sobre o clima, os acontecimentos do bairro, eventualmente um ou outro crime importante que esteja movimentando a opinião pública, e lentamente o relógio se arrasta até as 16h. ele pede desculpas por sair assim tão cedo, há uma porção de afazeres ainda para hoje, e dona estela o acompanha até a calçada, acenando de longe enquanto o carro buzina e jonas expira uma mistura de alívio e culpa.

Friday, January 09, 2009

coração de mãe

ana, oi. olha, pára com isso. por que você saiu daquele jeito? se descabelando, chorando, fazendo o maior auê, vizinho vai ter assunto pro semestre inteiro. porra, não tem cabimento, que tempestade em copo d'água, mulher. ã? eu, cafona? dane-se, ok, não tô nem aí, só quero que você pare de frescura e deixe os outros serem felizes também. sim, eu sei. ahã. sim, claro. mas e o que isso tem de mais? diz, o que tem de mais. eu não vejo problema algum, te juro. sim, eu entendo, mas isso não quer dizer que eu tenha que concordar com tudo que você diz. ah, insensível é você, nem vem. há, essa é boa! não estou invertendo papel nenhum, que mania. veja, a neusa é uma pessoa tão doce, mas tão doce, tem o maior carinho pela menina. trata como se fosse filha mesmo, sabe? como assim? ué, e você queria que ela tratasse sua filha mal? beliscasse a raquel, botasse de castigo? porque tem gente que faz isso, não sei se você sabe. volta e meia aparece na tv, os telejornais sempre mostram. tipo umas crianças torturadas, babá desce a mão e os pais botam câmera escondida. não tô mudando de assunto. só quero te mostrar que essa discussão toda é uma besteira tão grande que não me conformo de ter que ficar aqui perdendo tempo e batendo boca com você. não, eu não tenho compromisso. sim, tem o almoço na minha mãe, mas não tem problema se eu me atrasar alguns minutos. ó, não ofende, deixa minha mãe fora disso. vamos resolver, sério. te pergunto, que mal tem, ana? hein? fala, pô. alô, ana? ana-a? oi, ai, pensei que tivesse caído. então, eu só quero dizer que se a menina quer fazer isso pela madrasta, não tem problema, poxa. eu sei que você não morreu, ana, é só um jeito convencional de se chamar a pessoa. não, eu não quero que você morra. eu só quero, tá prestando atenção? eu só quero que você relaxe e autorize a raquel a entrar com a neusa na igreja, simples assim. eu sei que você já sabe o que eu tô pedindo, não estou te chamando de idiota. ai, cacete. é que com você as coisas são tão longas e complicadas, sempre foram. ana, calma, não desliga. vamos resolver. ana, alô? alôu?